Jamais gostei de viver só. Desde muito novo, andava
me enrolando com alguma meia de seda. Meu estilo garboso e requintado exigia
que eu não me envolvesse com qualquer uma. Meias grossas não tinham vez comigo.
E, mesmo as finas, quando ficavam velhas e furadas, eram trocadas pelas mais
novas, sem culpa, nem remorso. Achava insuportável o contato com rugas e fios
puxados; nem poderia; minha pelica era da melhor qualidade. Passei quase toda
minha vida em um luxuoso closet. De minha família, eu era o mais elegante, o mais
fino, o mais bem cuidado e, também, o mais festeiro. Não era qualquer lugar que
eu freqüentava; somente reuniões e eventos de grande pompa.
Em meio ao burburinho dos
grandes salões, muito roçar de peles. Ninguém pode sequer imaginar as fantasias
eróticas que realizei nos recônditos do meu ser. Minhas companheiras eram sempre
muito ardentes e gostavam de moldar-se a mim. Foram tantas que nem consigo
lembrar todas. Escuras, claras, com brilho, opacas, de rendas, lisas, que
importa; amei uma por uma como se fosse a última. E, na maior parte das vezes, foi mesmo.
Poucas resistiram a uma noite comigo. Rasgavam-se de amor. Eu as destruía em
alguns passos de dança. Na manhã do novo dia, enquanto repousava no aconchego do
closet, elas estavam jogadas no piso frio, estraçalhadas, à espera de um
destino cruel – o lixo. Alguns dias de repouso ao guerreiro, e logo aparecia um
novo amor. Um rápido período de adaptação, uma boa música e pronto: lá estava
eu, arrebatador.
Na idade madura comecei
a ter minhas preferências. As completamente transparentes me fascinavam.
Estavam ali, mas pareciam não estar. Eram enigmáticas e muito mais delicadas. O
tipo arrastão me enlouquecia com aqueles fiozinhos sempre tramando alguma
coisa. Mas, foi perto da meia idade que me apaixonei completamente. E foi um
amor impossível. Era o estigma da mais excitante criatura que eu jamais vira.
Repousava erótica sobre o peito do pé esquerdo, provocativa, sem que eu pudesse
tocá-la. Me torturando, se oferecendo. Acabou com a minha paz. Desde então,
nunca mais fui o mesmo. Só queria poder palpar aquela maravilhosa sereia, razão
de todas as minhas inquietações. Mas ela não caiu nos meus encantos. Eu
esperava ansioso o momento em que escorregaria para dentro de mim. O que nunca
aconteceu. Rejeitado, não suportava mais o convívio com meia nenhuma, nem mesmo
as transparentes. Tratava-as com grosseria e, muitas vezes, já ficavam destruídas
no primeiro contato. Nada mais me importava. E, de tanto rasgar as meias, me
dei mal: fui jogado num canto do closet. Tornei-me objeto sem serventia.
Fiquei condenado, por algum
tempo, a ver minha sereia desfilar ao longe, cada vez mais distante no tempo e
no espaço. Até que um dia fui colocado numa caixa escura, certo de que era o
fim. Viajei por lugares que nem sei. Quando tornei a ver a luz, acomodaram-me
numa gaveta malcheirosa, junto com sapatos, tênis e botas de baixa qualidade.
Foi uma grande humilhação. Minha velhice tem sido uma lástima. Primeiro, forçado
a me relacionar com meias ásperas, surradas e cerzidas. E, agora, com um pé
quebrado, abandonado e sujo, uma parte de mim mora embaixo do armário e a outra
se perdeu faz tempo, como os amores do passado.