quarta-feira, 30 de maio de 2012

ESCARPIM PRETO, N° 36, SALTO 10


 Jamais gostei de viver só. Desde muito novo, andava me enrolando com alguma meia de seda. Meu estilo garboso e requintado exigia que eu não me envolvesse com qualquer uma. Meias grossas não tinham vez comigo. E, mesmo as finas, quando ficavam velhas e furadas, eram trocadas pelas mais novas, sem culpa, nem remorso. Achava insuportável o contato com rugas e fios puxados; nem poderia; minha pelica era da melhor qualidade. Passei quase toda minha vida em um luxuoso closet. De minha família, eu era o mais elegante, o mais fino, o mais bem cuidado e, também, o mais festeiro. Não era qualquer lugar que eu freqüentava; somente reuniões e eventos de grande pompa.
            Em meio ao burburinho dos grandes salões, muito roçar de peles. Ninguém pode sequer imaginar as fantasias eróticas que realizei nos recônditos do meu ser. Minhas companheiras eram sempre muito ardentes e gostavam de moldar-se a mim. Foram tantas que nem consigo lembrar todas. Escuras, claras, com brilho, opacas, de rendas, lisas, que importa; amei uma por uma como se fosse a última.  E, na maior parte das vezes, foi mesmo. Poucas resistiram a uma noite comigo. Rasgavam-se de amor. Eu as destruía em alguns passos de dança. Na manhã do novo dia, enquanto repousava no aconchego do closet, elas estavam jogadas no piso frio, estraçalhadas, à espera de um destino cruel – o lixo. Alguns dias de repouso ao guerreiro, e logo aparecia um novo amor. Um rápido período de adaptação, uma boa música e pronto: lá estava eu, arrebatador.
            Na idade madura comecei a ter minhas preferências. As completamente transparentes me fascinavam. Estavam ali, mas pareciam não estar. Eram enigmáticas e muito mais delicadas. O tipo arrastão me enlouquecia com aqueles fiozinhos sempre tramando alguma coisa. Mas, foi perto da meia idade que me apaixonei completamente. E foi um amor impossível. Era o estigma da mais excitante criatura que eu jamais vira. Repousava erótica sobre o peito do pé esquerdo, provocativa, sem que eu pudesse tocá-la. Me torturando, se oferecendo. Acabou com a minha paz. Desde então, nunca mais fui o mesmo. Só queria poder palpar aquela maravilhosa sereia, razão de todas as minhas inquietações. Mas ela não caiu nos meus encantos. Eu esperava ansioso o momento em que escorregaria para dentro de mim. O que nunca aconteceu. Rejeitado, não suportava mais o convívio com meia nenhuma, nem mesmo as transparentes. Tratava-as com grosseria e, muitas vezes, já ficavam destruídas no primeiro contato. Nada mais me importava. E, de tanto rasgar as meias, me dei mal: fui jogado num canto do closet. Tornei-me objeto sem serventia.
            Fiquei condenado, por algum tempo, a ver minha sereia desfilar ao longe, cada vez mais distante no tempo e no espaço. Até que um dia fui colocado numa caixa escura, certo de que era o fim. Viajei por lugares que nem sei. Quando tornei a ver a luz, acomodaram-me numa gaveta malcheirosa, junto com sapatos, tênis e botas de baixa qualidade. Foi uma grande humilhação. Minha velhice tem sido uma lástima. Primeiro, forçado a me relacionar com meias ásperas, surradas e cerzidas. E, agora, com um pé quebrado, abandonado e sujo, uma parte de mim mora embaixo do armário e a outra se perdeu faz tempo, como os amores do passado.


MEU NOME: MINHA CRUZ E MINHA REDENÇÃO


O nome que me deram quando nasci, composto laboriosamente pelo meu pai e aceito com vaidade pela minha mãe, foi um dos maiores pesos da minha vida. Cresci odiando e rechaçando tal esquisitice. Perdia toda a graça quando alguém perguntava meu nome, ou quando ele era dito em público. No colégio, nos primeiros dias do ano letivo, quando as professoras me chamavam, em voz alta e clara, pelo primeiro e segundo nomes, todos se voltavam para ver quem era a dona daquela aberração. Acho que elas faziam de propósito, para me humilhar, visto que nunca houve outra Zulmara na mesma sala, no mesmo colégio, no mesmo bairro.
Na infância, brincávamos de roda, de estátua, de passar o anel. Falávamos em código. Usávamos a língua do P. Entre tantas brincadeiras, a que eu mais gostava era a de trocar de nome. Ou inventávamos nomes novos, e isso era o máximo, ou usávamos os nomes umas das outras durante todo um dia ou uma tarde. Eu adorava, porém, quem ficava com o meu nome sempre queria terminar a brincadeira antes do tempo.
Os adultos complacentes comentavam: que nome estranho ou que lindo nome, este último me soava como um deboche. Se eu fosse portadora de um nome feio ou estranho, vá lá. Mas, eles não se contentaram com um, me deram dois. Era preciso que uma única filha homenageasse ao mesmo tempo duas avós? Poderiam ter juntado um avô com uma avó e não ficaria tão estranho: Maria Augusta. Mas, se juntassem os pares errados, seria igualmente uma catástrofe: América Zulmira. Por que não homenagearam uma de cada vez? Duas avós, duas filhas. Perfeito! (A Magda – que lindo nome – ia querer me matar por essa idéia).
Que sina a minha. Éramos quatro irmãos, três com nomes simples e bonitos: Claudio, Ronaldo e Magda. E eu? Zulmara Inácia, muito prazer. Tá bom, já chega! Vocês devem estar achando exagerado este meu dramalhão. Mas, estou apenas reproduzindo os meus sentimentos de criança e adolescente. Hoje já sou mocinha e consigo entender que eles não fizeram por mal. Foi por amor.
Afinal, este nome faz parte da minha história. Quando a gente não pode com o inimigo tem que se unir a ele. Foi o que fiz, sem saber. O nome teve papel fundamental na minha formação; contribuiu para me tornar mais forte do que meu sobrenome exigia. Cresci acreditando que lágrimas e fricotes combinavam com Alices e Clarissas, nunca com Zulmaras, muito menos Inácias. Coloquei Zulmaras mesmo, plural, porque, pasmem, existem muitas por este Brasil afora. Inclusive, faço parte de uma comunidade só de Zulmaras no Orkut. Já somos 37. E, para minha surpresa, eu sou a única que acha o nome feio. Todas o acham lindo. A grande maioria também recebeu o nome para homenagear pais ou avós.
Mas, Zulmara Inácia... Só tem uma.


NEM FADAS, NEM BRUXAS


          Minha primeira professora era uma mulher sem graça. Magra, discreta, nenhum encanto para povoar minhas lembranças. Madura como a minha mãe, pronta a repreender, exigir e educar. Crianças gostam de professoras jovens e cheias de vida. Moças bonitas que sirvam de espelho às meninas e despertem as primeiras paixões nos garotos. No imaginário infantil só existem duas possibilidades: Ser jovem, como a professora Magda, por quem meu irmão nutriu uma paixão tão intensa, que resultou na escolha do nome do bebê que nossa mãe estava gerando. Ou ser velha, como as avós, que cobrem as crianças de carinhos, vontades, passeios e guloseimas fora de hora.
            Como eu ingressei na escola já alfabetizada, tinha pouco interesse pela professora. Novidades para mim eram o avental branco bem engomado, as meias da mesma cor e os sapatinhos pretos, de boneca. A pasta, o livro, o caderno, o lápis: isso, sim, me fascinava. Os colegas e a fila também. Adorava formar fila para entrar na sala. Era por ordem de altura e eu, por ser a mais baixinha, ocupava o primeiro lugar – na verdade, disputava com a Elisa. Nunca se soube quem era a menor, então, a cada dia uma ocupava a primeira posição. Logo, passei a dar mais valor ao status de ser a primeira na fila, pois, em todas as outras situações escolares, eu era a última, por causa da letra zê do meu nome. Naquela época, ainda me restava outra pole position: no boletim. Sabia tudo e era a primeira da aula. Melhor dizendo: disputava com a Elisa, alfabetizada em casa também. Mas, não pensem que guardei mágoas da colega, pelo contrário, ela é a minha melhor lembrança da primeira série. Sentávamos juntas e, durante um bom tempo, fomos amigas inseparáveis. Há poucos meses, nos reencontramos, via internet, e avivamos todas essas memórias. Foi muito bom.
            Na terceira série, tive uma professora tão vilã, que, durante um teste, por medo de pedir para ir ao banheiro, fiz xixi nas calças. Então, tive que esperar todos saírem, para que não rissem de mim.         
            Mas, a professora que marcou minha infância não estava no meu colégio, estava na minha rua. Moema vinha com o marido, semanalmente, visitar a sogra. Era jovem, bonita e carinhosa. As crianças enchiam a calçada para vê-la e brincar com ela. Tratava criança como gente grande. Suas cartinhas apareciam debaixo de nossas portas, cheias de flores miúdas, borboletas e versinhos numa letra muito caprichada. Acho que todos nós a amávamos.
            Foi durante o ginásio que eu tive a melhor professora de minha vida. Chamava-se Leila. Era uma senhora doce e terna, que lecionava Matemática. A minha dificuldade era tanta (eu migrara de um colégio mais fraco), que quase tive que repetir o ano. Mas, Leila fazia com que as frações parecessem poemas. E eu queria muito aprender, para não decepcioná-la. Nessa época descobri a Matemática, e passei até a gostar dela. Essa professora me ensinou muito mais do que cálculos, me ensinou a raciocinar e a perseverar.
            Além daquela da terceira série, outras vilãs passaram pelo meu quadro-negro, como as de música, que não aceitavam minha voz fanhosa e desafinada, atrapalhando as aulas de canto. Ou, as que me torturavam deliberadamente, chamando pelos meus dois estranhos nomes. A partir da adolescência, comecei a virar o jogo. Em alguns casos a vilã fui eu. Mas, disso ainda não posso falar - não, enquanto tiver filho adolescente.     
            Encerrei com chave de ouro a época escolar, no que diz respeito aos professores. No último ano do segundo grau, tive um professor de Inglês que dava o que falar. Cabelo preto e liso, olhos meio puxados, deixava as meninas mais tontas ainda. Eu já trabalhava, portanto, estudava à noite. Vivia cansada e não tinha muita vontade de assistir às aulas, quando aquele morenaço chegou para substituir a professora grávida. Foi meu maior estímulo para terminar o ano com boas notas e poucas faltas. Pelo menos em Inglês.



JOGOS DE CAMA


 Relações afetivas podem ser comparadas a jogos e esportes. Cada casal escolhe o seu modo de praticar. Jogo individual ou coletivo, com parceiro ou com oponente. Embora não inclua todos os esportes, esta classificação envolve uma importante parte do universo dos relacionamentos.
Os que praticam o jogo individual caracterizam-se por ignorarem o parceiro. Cada um tem seus interesses, não somam nada. Há apenas um encontro de corpos. Em muitos casos assemelha-se a uma luta – tem início como o judô, com todos os seus rituais de habilidade e concentração. Ao final é luta livre, vale tudo.
O casal vôlei de praia joga em dupla, e separados do resto do mundo por uma rede de proteção. Juntos, homem e mulher defendem seu espaço com vigor. E, quando a família cresce, formam um time hábil e coeso. Objetivam a vitória, mas valorizam muito as jogadas. A principal característica neste tipo de jogo é a troca e a ajuda mútua.
Outros também jogam em dupla, mas sem rede. Interagem com todos, sem perderem o foco. É como uma partida de canastra, onde há grande sintonia entre os pares. Troca de olhares e gestos mínimos falam por si. Um ajuda o outro, para que ambos saiam vencedores. O objetivo é o mesmo e, quando perdem, não há culpado. Renovam-se para a próxima partida. Nestes jogos os parceiros costumam ser fixos e fieis.
Há casais que agem sempre como oponentes. É o tênis. O objetivo do jogo é um mostrar-se melhor do que o outro, forçando-o a cometer um erro. A rede que os separa é baixa, permitindo momentos de aproximação. Concorrem principalmente na vida profissional. Mas em casa as coisas não são muito diferentes. Discordam sobre quase tudo e nenhum abre mão de nada. Acabam não tendo filhos, pois não conseguem chegar a um acordo sobre o assunto. Quando se separam, tornam-se inimigos declarados. Seguem a disputa set a set, até chegarem ao tie-break.
Levantamento de peso: um dos parceiros carrega o outro nos ombros, como uma barra de ferro. Treme todinho, faz careta, mas não desiste.
Os do atletismo correm, saltam obstáculos, usam a vara - ou não. Juntos, separados, ou em sistema de revezamento, acabam, invariavelmente, arriados no chão.
Relacionamento tão cheio de regrinhas, que nem mesmo os interessados conseguem decorar todas, é basquete!
Este sistema de classificação não é completo. Assim como nos esportes, existem muitas outras maneiras de se relacionar. É possível a combinação de dois ou mais tipos, como o futevôlei, onde se mistura a parceria do vôlei com a agressividade do futebol.
Para mim, o mais chato é o nado sincronizado, onde tudo é previsível, combinado, esteticamente perfeito, mas absolutamente sem emoção e sem surpresa.
E você, como classificaria o seu relacionamento?


KIT MATRIMÔNIO



O Kit Matrimônio só deve ser adquirido por maiores de 18 anos.
Possui número variável de peças.
É impossível montar sozinho. O ideal é começar com duas pessoas.
Procure seguir um dos modelos já conhecidos, mas nem pense em fazer igual. Cada kit tem suas próprias peças e uma montagem nunca será igual a qualquer outra.
Há dois tipos de montagem: plana ou tridimensional (3D).
    
Instruções de Montagem:

            Na plana, colocam-se as duas peças principais ao centro. É muito importante que estas fiquem bem encaixadas, pois disto depende o acerto das peças posteriores. É uma montagem relativamente simples, pois possui poucas peças e depende basicamente de atenção e planejamento. Na maioria das vezes, acerta-se na primeira ou segunda tentativas. E, uma vez bem montado, pode durar muitos anos.

            A tridimensional é bem mais complexa, com mais peças e elementos que vão sendo adicionados aos poucos durante a montagem. Podem ser colocadas algumas peças extras, especialmente no final. O quebra-cabeça cresce para todos os lados ao mesmo tempo. É preciso muita atenção, pois, se ficar montando um lado, preterindo outro, tudo pode ruir. Nem sempre quando desmorona é possível reconstruir. Exige muito equilíbrio, paciência e uma grande dose de boa vontade.
            O segredo de tudo está na base; quando bem montada sustenta todo o resto por muito tempo. Se apenas algumas peças caírem, será possível recuperar, desde que seja detectado logo o que motivou o desequilíbrio. Em alguns casos mais extremos, pode-se descartar alguma peça que esteja prejudicando toda a estrutura. Mas, antes, devem-se esgotar todas as possibilidades de encaixá-la de volta, pois com a exclusão perdem-se alguns pontos.
            O resultado final é magnífico! Serve de modelo para iniciantes, pois quando todas as peças estão em seus devidos lugares e bem encaixadas, torna-se uma grande obra. Há casos em que, mesmo retirando-se uma peça da base, a estrutura não fica comprometida. Um kit bem montado sustenta-se por tempo indeterminado, pois à medida que algumas peças vão caindo, outras mudam de função, para que tudo permaneça em equilíbrio.


                                                       

NEGRO CHEIROSO


 Fui apresentada a ele quando comecei a trabalhar. Era, de certa forma, uma situação inusitada, pois ninguém na minha família apreciava. No escritório, parecia que todos gostavam e estavam habituados a ele, menos eu. Tentando disfarçar, eu participava das rodinhas de bate-papo com os colegas. Ele era presença constante em todos os acontecimentos. E sua negritude me atraía e me causava repulsa ao mesmo tempo. Assim como o cheiro forte, característico, diferente de tudo o que eu já sentira.
Ficamos, assim, nesta aproximação lenta durante algum tempo. Mesmo sem ver, sabia quando ele adentrava pela sala. Sem tocá-lo, podia sentir o calor de sua presença. Era forte e deixava marcas por onde passava. Fui me deixando seduzir. Não de uma forma irresistível. Ao contrário, eu me sentia bem segura. Ia me entregar àquele prazer por vontade, curiosidade e também pela pressão velada dos colegas. Decidi me aventurar e não me arrependi. Foi uma experiência encantadora. Repeti muitas outras vezes, mas somente no horário do trabalho. Em casa nem pensava nele. Minha vida doméstica seguiu inalterada.
Ele não saiu da minha vida com a mesma mansidão com que entrou. Foi uma ruptura brusca. Fui demitida. Nunca mais ele aqueceu minhas tardes frias. Não me lamentei, nem por ele, nem pelo emprego. Foi um affair de ocasião. Passou. Nunca senti sua falta.
Só nos reencontramos anos depois. Primeiro vi no shopping. Depois em outdoors e na televisão. Fazia sucesso - o negrão estava em alta. Senti uma pontinha de saudade. Lembrei do nosso primeiro contato, do calor dele nos meus lábios. Então, já madura, ciente dos meus desejos e possibilidades, resolvi ir ao seu encontro. Mas fui levada inteiramente pela emoção daqueles primeiros dias de estagiária, quando, muito jovem, me entregara ao sabor da aventura. Desta vez, estava preparada para apreciá-lo com meus cinco, ou seis, sentidos. E de tudo o que mais me seduzia ainda era o cheiro.
Hoje, nem preciso sorvê-lo por inteiro. Sentir o seu aroma já me aguça todos os sentidos. Dobrei-me aos seus encantos. Não vivo mais sem um bom cafezinho.


JOGO


- Larga do meu pé! Não puxa.
- Então, vamos.
- Nunca. Nem morto.
- Não resiste. Não adianta.
- Por que eu?
- Porque tá na tua hora.
- Espera! Vamos negociar.
- Ah, ah! Onde já se viu isto: negociar com a Morte?
- Eu sou acostumado a negociar. Sempre fiz boas alianças.
- Comigo não tem aliança, nem negociação. Tá na hora e pronto!
- Mas conheço tanta história de gente que voltou; foi até o túnel e voltou.
- Não é negociação. É merecimento. Ou engano.
- Quê!? Tá dizendo que a Morte pode errar o chamado?
- Não erra, se engana. Mas sempre se corrige a tempo. Já vocês, por aqui, erram muito e nunca se corrigem.
- Então podes estar enganada. Meu cunhado se parece muito comigo; mora ao lado; fuma muito e vive doente. É ele.
- Não me enganei, não. Aquele ainda tem utilidade por aqui. Vai mais tarde.
- E eu? Por acaso sou inútil?
- Chega! Para de ser cagão. Vou te levar para um lugar agitado e quente...
- Quente? Não. Não quero.
- E por que não? Passaste a vida fugindo do clima frio do sul. Vais encontrar muitos conhecidos lá.
- Ah, é? Amigos?
- Humm... Companheiros, aliados. Entende, né?
- Entendo. Campanha, caixa dois, conchavos. Bons companheiros! Pode até ser divertido.
- Isso! Então, vamos.
- Para! Só mais uma pergunta: como as coisas funcionam por lá?
- Muito quente. Meio esculhambado. E sem conchavos.
- Muita gente?
- É um local de passagem. Estada meio rápida. Lá é tudo fera. E todos querem a mesma coisa. O maior come o menor, até que chega um maior que ele, e assim por diante.
- E depois?
- Volta.
- Para cá?
- Claro. Volta pobre e doente. Já nasce na fila do SUS.  O Velho lá em cima se diverte. É o game preferido Dele: Fucking you now.


JOÃO DE BARRO


O menino foi concebido por descuido, e gerado por teimosia. O encontro – desencontro – daquele casal foi um grande engodo, uma chacota. Ele detestava a idéia de ter um filho com aquela desequilibrada. Mas a mulher levou a gravidez até o fim. Como que para castigá-lo, pois logo ficou claro que o gene da maternidade lhe era totalmente ausente ou defeituoso. João era inteligente, tinha um emprego razoável, mas só queria farra. Gastava tudo com mulheres, jogo, bebidas e drogas. Um bon vivant, que jamais pensaria em ser pai. Maldizia a noite em que se deixou seduzir por aquele sorriso óbvio. É chave de cadeia, disseram os amigos. Mesmo assim se afundou na farta cabeleira dela. Gostava de viver perigosamente.
            Levou a dita para morar com ele. Não passava sem um cheiro de mulher mesmo. Já que carregava um filho dele, resolveu dar uma chance ao azar. Sem emoção alguma. Nunca passou a mão na barriga dela. Quanto mais a conheceu, mais teve certeza do desencontro de almas. Fazia barraco todo o dia. Abusava do estado interessante. Fazia estranhas exigências. Desejos. Náuseas. Mau humor. Esperteza. Quase levou o homem à loucura. E sexo, que é bom, nada. Causava enjoo.
            João, o desligado, gastador, bebum e irresponsável, foi tomado de susto e pânico quando a criança nasceu. Deu-se conta de que ela não cuidaria. Amamentar doía os peitos, limpar a bunda dava ânsia de vômito, levantar de madrugada não conseguia. Se ela bebesse, fumasse, ou cheirasse talvez fosse mais fácil. Um tratamento, quem sabe! Mas o caso dela era mais grave. Era louca de cara. Fazer o quê?
            Quando o menino chorava na madrugada, quem embalava era o pai. Decidiu não beber mais à noite, pois precisava ter sono leve. Após três internações do bebê, por causa de asma brônquica, João parou de fumar. Passava horas observando de sua janela o trabalho minucioso do pássaro que construía o ninho. Enquanto a criança brincava, o pai aprendia. Cresceram juntos.  Nas reuniões da escolinha, lá estava o João na primeira fila. Criaram uma parceria invejável. Brincavam na pracinha. Jogavam bola, andavam de bicicleta, iam ao cinema, ao teatro de bonecos. Como o pássaro, ele também estava construindo seu ninho. Sua felicidade agora só dependia do filho. Era como se, no sorriso dele, o mundo todo lhe sorrisse.
Quando a mulher foi embora, levando o que julgava ter valor naquela casa, eles nem perceberam. Bastavam-se.



O GRANDE BAU


 Abrir velhos baús de documentos nos faz coçar o nariz e, quem sabe, seja essa comichão o gatilho de tantas lembranças. Lembranças que ora nos fazem sorrir, ora nos fazem chorar. Em geral as lembranças da infância são as mais poderosas, pois nos reportam a um período de suposta inocência e descomprometimento com a realidade. Fotografias são pontos de partida para essas viagens no tempo.
            A foto do primeiro animalzinho de estimação, que nos lembra o quanto já fomos mais generosos e afetivos. Aquela da reunião de família, onde aparecemos sorrindo junto aos primos, tios, irmãos e avós, reaviva uma chama enfraquecida.  Tempo de união e ajuda mútua. Uns acobertando as artes dos outros. E o que dizer daquele porta-retratos na estante da sala, com o qual convivemos durante anos: a noiva sorridente de branco, o noivo sério em sua gravata de seda. E aquele enorme bolo de três andares, do qual não comemos nenhum pedacinho. E, por fim, a fotografia da formatura. Encerramento de um grande capítulo: o da irresponsabilidade. Festas, bebedeiras, amigos, colegas, churrascos, tudo fica para trás. Quando tiramos a toga, assumimos nosso lugar no mundo adulto.
            Documentos escritos tem a força das palavras e das datas. Certidão de nascimento que dá detalhes de um passado pouco conhecido: foi declarante o avô, às dez horas do dia vinte e quatro. Certificado de batismo, primeira comunhão - com vela e foto amareladas - lembrança de que um dia tentaram me fazer Católica. Boletim da terceira série do curso primário, atestando a minha antiguidade. Uma camisa autografada por toda a turma da quarta série do ginásio, com nomes esquecidos pelo caminho. Cartas recebidas de amores adolescentes, algumas beijadas, outras amassadas, prova contundente da leviandade juvenil.
            Tantos objetos, guardados ao longo dos anos, que hoje não tem mais nenhum significado. Uma bolacha de chope, uma moeda estrangeira, um brinco sem par. Outros, com significação especial, que contam uma história importante, como a rosa vermelha achatada dentro do livro de poesia. Ou a medalha de primeiro lugar em ginástica olímpica, com a data meio apagada, mas não esquecida. Assim como jamais foi esquecido o friozinho na barriga e o sabor dos aplausos. A primeira carteira estudantil. A pequenina chave da caixinha de jóias, que ainda toca o tema do filme Love Story. Uma fita cassete gravada pelas crianças da família, com músicas de Natal – que relíquia.
            O meu baú já inclui objetos menos antigos, como lembrancinhas dos filhos. A primeira roupa, o sapatinho, e o babeiro que eu mesma bordei. Os cartões e desenhos dedicados à mamãe. Os bilhetes de amor do pai deles. Poesias. Carinho. As fotografias das férias em família. Da casa nova. Dos aniversários e outras ocasiões especiais. Há também certidões de todos os tipos: nascimento, casamento, óbito.
            Abrir velhos baús de documentos nos faz coçar o nariz e, quem sabe, seja essa comichão o gatilho de tantas lembranças. Ou não. Talvez o único gatilho seja nossa própria emoção, que está sempre a remexer nas lembranças, como se quisesse testar nossa capacidade de gerenciar o grande baú da memória.


O INFIEL DA BALANÇA


 Há casos em que a infidelidade se faz necessária. Passei a refletir mais sobre isso depois de ler o livro de Ali Ayaan Hirsi: Infiel – A história de uma mulher que desafiou o Islã. Ayaan ficou mundialmente conhecida por sua luta contra a opressão e a violência que recaem sobre as mulheres nas sociedades muçulmanas. Foi eleita pela revista Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo e hoje vive nos Estados Unidos.
O livro de aproximadamente 500 páginas, da Cia. Das Letras, foi lançado em 2006. Embora pareça uma história medieval, conta a vida da autora, que nasceu em 1969, na Somália. Ou seja, passa-se em pleno final do século XX, adentrando no novo século e no novo milênio. Ela conta os horrores por que passou na infância, adolescência e juventude, cheia de privações, surras, guerras civis e exílios. O mais desconcertante para nós ocidentais é a clirectomia sofrida aos cinco anos pelas mãos da avó. Tudo em nome de Alá.
Obrigada a frequentar escolas em muitas línguas diferentes e conviver com costumes que iam do rigor muçulmano da Arábia à mistura cultural do Quênia, Ayaan chegou a aderir ao fundamentalismo islâmico como forma de manter sua identidade. Mas, diante da perspectiva de ser obrigada a se casar com um desconhecido escolhido por seu pai - conforme uma tradição que ela questionava -, acabou fugindo e se exilando na Holanda. Lá viveu durante treze anos, onde tomou conhecimento de outra cultura e outras religiões. Aprendeu sobre democracia e direitos individuais do ser humano. Começou a entender que seu sofrimento era apenas uma questão dogmática e que a fé em Alá não precisa, de modo algum, ser uma jornada de espancamentos, submissão feminina e dor. Eleita Deputada, trabalhou pelos direitos dos imigrantes e, por sua ousada infidelidade ao Alcorão na luta contra as desigualdades e a crueldade do islamismo, foi perseguida e sofreu inúmeras ameaças de morte.
Com o amigo e cineasta Theo Van Gogh realizou um vídeo chamado “Submissão” sobre a opressão da mulher muçulmana. Por este curta-metragem, Theo foi assassinado e ela, ameaçada de ser a próxima vítima, teve que viver durante mais de dois meses escondida e escoltada por órgãos de segurança do estado, numa peregrinação por vários estados Americanos.
A vida desta corajosa mulher muçulmana, privilegiada em relação a tantas outras que sucumbem nas armadilhas do fanatismo religioso, é exemplo para todas nós. É inconcebível que mulheres ocidentais, vivendo em uma sociedade cheia de leis que as protegem, se deixem usar por homens que as espancam e humilham, em nome de uma desnecessária fidelidade ancestral e anacrônica. Ser fiel a si mesmo, àquilo que se acredita importante e verdadeiro, é fundamental na construção de uma sociedade melhor e mais justa.


O MAL ESTÁ NA RAIZ


Apesar de termos chegado ao segundo milênio, no Brasil, ainda vivemos sob o caráter antiquado do preconceito. Negros, mulheres, indígenas, deficientes, e, por óbvio, pobres em geral sofrem toda a sorte de humilhação, por meio de atos discriminatórios. Pobres são maioria no Brasil, desde que ele foi descoberto. É cada vez maior o número de mulheres chefes de família, inseridas no mercado de trabalho, sujeitas a salários inferiores e jornada dupla. É visível o aumento do número de deficientes, resultado de um trânsito violento, insegurança pública e impunidade. E os indígenas, estes sim pertencem a uma minoria cada vez mais esmagada pelo preconceito da cultura branca.
São alarmantes os dados que mostram a relação da nossa população negra com a pobreza e a violência, assim como a situação de racismo disfarçado em que vive grande parte da sociedade, incluindo os governos. As estatísticas mostram que negros (incluindo pardos) já compõem a maior parte da sociedade brasileira. Mostram também que os negros ocupam menos cargos importantes e recebem salários menores que os brancos, com escassas oportunidades de evolução intelectual e econômica.
Enquanto governo e sociedade continuarem aliviando suas culpas com medidas paliativas e protecionistas em relação aos excluídos, tudo será como antes. É preciso agir com realismo e coragem, criando uma verdadeira política de inclusão social do pobre, seja ele branco, negro, ou índio, propiciando acesso à boa alimentação, saúde, educação, emprego, assistência social e psicológica desde a gestação. A desigualdade existe muito mais pela condição de miserabilidade do que pela raça. Oportunidades iguais significam equilíbrio na base. Um negro saudável, bem nutrido e bem instruído tem muito mais condições de enfrentar e combater qualquer preconceito.
Criar vagas obrigatórias em empresas ou universidades públicas, para pessoas negras, sem que tenham obtido mérito para isso, não passa de retrocesso. Isso se assemelha a fazê-los entrar pela porta dos fundos, como foi comum em épocas passadas, deixando-os expostos a outro tipo de discriminação. É mister qualificá-los, para que possam estar em igualdade de condições e disputarem todos os cargos a que têm direito. Mas, para isso, é preciso elevar o número de vagas e, principalmente, o nível do ensino público no país. Criar postos de trabalho para os milhares de pais desempregados de todas as raças. Dar melhores condições de vida aos negros pobres, desde o nascimento, não apenas depois de crescidos na dificuldade, prejudicados pela subnutrição e com orgulho ferido.  Inserir o negro na sociedade branca é tarefa para começar cedo, na raiz do preconceito, eliminando grande parte das dificuldades que fazem a diferença. E, neste aspecto, já estamos com mais de 120 anos de atraso.

FUGA


É tempo de mudar.
A vida moderna nos ameaça de todas as formas. Assaltos, sequestros, roubos e balas perdidas desfilam diariamente na nossa sala de estar. Olhos fixos na televisão, as crianças pensam que é mais um filme de ação. Segurança tem um alto preço emocional e financeiro. Cercados de grades, guaritas, alarmes, vidros fumê, vamos acreditando em dias melhores.
Sem mais opção, também decidi fugir para um condomínio, onde possa dividir meu medo, minha covardia e minha esperança. Deixo para trás um pedaço da minha história. Vou deixar a casa construída para criar nossos filhos e animais de estimação. Onde semeamos o tão sonhado jardim. Sinto-me como um rato, abandonando o navio antes que afunde. Estudei todas as possibilidades, como num jogo. Acuada, faço o movimento em direção ao que penso ser o melhor para minha família. Não tenho certezas, só esperanças. Não é fácil para ninguém, por que haveria de ser para mim?
Tenho que me desfazer de mais de dois terços dos meus móveis e objetos. Estes apertamentos modernos não são feitos para móveis antigos. Tão lindas as poltronas verde que o Jorge chamava de “Sinca Chambord”. Aquele espelho com mais de cem anos é muito pesado para as delicadas paredes de gesso acartonado. As fotos dos meninos, expostas escadaria abaixo, vão escorregar até o fundo de uma gaveta. Nem mesmo os quadros vou poder levar. Apartamentos pequenos têm as paredes tapadas de móveis sob medida para aproveitar bem qualquer cantinho. E, quando sobra algum espaço, não se colocam quadros, colocam-se espelhos, que ampliam o ambiente. Mas, dos originais não abro mão: Sérgio Fortes, Auris Abrantes, Kaliwa.
E o que será do nosso jardim e do nosso pomar? Quem estará por aqui quando as bergamoteiras florirem novamente? Antes de ir embora, preciso apanhar aquele mamão que está madurando. Ainda bem que deu tempo de colher todas as uvas. Os pingos-de-ouro que eu plantei no ano passado estão prontos para a poda artística. E a minha perfumada roseira amarela está cheia de botões, a me provocar, a me chamar na hora da partida.



CORPO PRESENTE


É uma prática conhecida desde a Antiguidade, quando seguia certos rituais. Nem sempre é uma escolha consciente. Em geral, a iniciação é feita bem cedo, ainda criança, ou adolescente. Alguns começam dentro da própria família, outros, escondidos dela. Trabalham com pouca roupa, exibindo suas formas. Meninas, às vezes, são impelidas pelo anseio de se mostrarem. Vaidade e ambição terminam por transformar o prazer em atividade contínua, gerando certo grau de dependência. O corpo fala. Utiliza signos de movimento para se expressar. Convida ao gozo. Manter boa saúde é fundamental. Não possuem um local certo para exercerem seu ofício. Os bem sucedidos têm um público mais refinado. Os principiantes, ou menos habilitados, expõe-se nas ruas e praças mesmo.  Mostram seus atributos para uma clientela de perfil bem definido. Este perfil não está ligado ao poder econômico, mas, sim, ao deleite.        A atividade é mais aceita quando praticada pelas mulheres. As sociedades machistas não toleram com a mesma benevolência a intromissão dos rapazes nesta área. O preconceito é maior com os garotos. Mesmo assim, eles invadiram o espaço com coragem e ousadia. Hoje, seu trabalho é tão requisitado quanto o delas.
 O exercício da atividade sofre influência tanto dos movimentos do passado, como das novidades tecnológicas. A popularização de novos meios de comunicação de massa – internet, vídeo, celular – estabelece outras formas de conexão com o público-alvo. As transformações sociais da época moderna questionam certos virtuosismos. Atualmente, praticantes deste ofício também são modelados em bancos universitários. Diferentes movimentos surgem para difundir cada vez mais esta atividade, comumente vítima de atitudes sectárias. Novas condições sociais, tais como o individualismo, a urbanização e a liberalidade, trazem oportunidades de fusão com outras áreas, como o Turismo e o Cinema. O profissionalismo cruza fronteiras.
Embora envolva certo glamour, não é uma atividade fácil. Muito competitiva e de futuro incerto. Como sua ferramenta de trabalho é o próprio corpo, tende a ser de curta duração. Poucos conseguem exercê-la por longos anos. Especialistas já maduros, quando começam a perder o viço, usam sua vasta experiência para selecionar e formar jovens iniciantes. Dedicam-se a percorrer escolas e associações, especialmente em comunidades carentes, em busca de pupilos.  Tornam-se agenciadores de novos talentos. Reúnem à sua volta uma legião de garotos e garotas dispostos a se aventurarem no sedutor e contingente mundo da dança.




PARODIANDO MEU CARO AMIGO


Meu caro amigo me perdoe, por favor, se não lhe envio uma marmita.
Mas, como agora apareceu o Contador, não mando nem batata frita.

Aqui no bar estão olhando o futebol. Tem muita ceva, muito chopp e rock’n’roll. Uns dias Brahma, noutros dias, só Skol.
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta.
Muita mutreta pra evitar a confusão. Tem gente encenando até a piada mais sem graça. Tem cliente misturando muita ceva com cachaça.
Ninguém segura esse balcão.
Meu caro amigo, eu não pretendo mais fiar. Vou lhe chamar à realidade, pois acontece que não dá mais pra evitar de lhe cobrar a improbidade.

Aqui no bar estão olhando o futebol. Tem muita ceva, muito chopp e rock’n’roll. Uns dias Brahma, noutros dias, só Skol.
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta.
É pirueta pra pagar cada tostão. Cliente pendurando a ceva, a canha e o cigarro. Tem gente se afundando também com o pé no barro.
Ninguém segura esse balcão.
Meu caro amigo, eu quis até lhe perdoar, mas a sua conta não tem graça. Eu ando aflito pra fazer você pagar. A partir de hoje nada passa.

Aqui no bar estão olhando o futebol. Tem muita ceva, muito chopp e rock’n’roll. Uns dias Brahma, noutros dias, só Skol.
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta.
Muita careta pra esconder a tapeação. Tem gente me saqueando de pouquinho. Tem gente se saindo de fininho, indo bem devagarzinho.
Ninguém segura esse balcão.
Meu caro amigo, eu não queria lhe ofender, já que o cliente anda arisco. Se me permite, vou fazer-lhe entender que o meu negócio virou risco.

Aqui no bar estão olhando o futebol. Tem muita ceva, muito chopp e rock’n’roll. Uns dias Brahma, noutros dias, só Skol.
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta.
A caderneta tá suspensa para os seus - o queijo da família, da Emília e da criança. Amigo, vamos logo acabar com essa lambança.
Nada de pessoal.
Adeus.





QUE RESSACA!


 Quatro amigos viajam para Las Vegas, a fim de realizar a despedida de solteiro de um deles. Empolgam-se como adolescentes no primeiro baile.  Acordam, no dia seguinte, na maior ressaca, com um tigre no banheiro e um bebê no sofá. Um deles perdeu um dente e o noivo desapareceu. Probleminhas nem tão difíceis de resolver, não fosse o fato deles não se lembrarem de nada. Absolutamente nada. E com o agravante de estarem às vésperas do casamento cujo noivo sumiu. Lançado no Brasil em 2009, o filme é Se beber, não case! No elenco, Bradley Cooper, Ed Helms, Zach Galifianakis, Heather Graham, Justin Bartha, Sasha Barrese e Rachael Harris, todos sob a direção de Todd Phillips.
Ao longo da história os protagonistas vão descobrindo todas as besteiras que fizeram. Como destruir a Mercedes do sogro, arrancar um dente como prova de amor, jogar uma cama de casal pela janela, roubar um tigre e meterem-se com gente da pesada. Cenas hilariantes, praticamente do começo ao fim, fizeram balançar as poltronas dos cinemas durante o ano passado. E, ainda hoje, causam frouxos de risos em locações de DVD.  Tiraram do sério até mesmo pessoas sisudas e pouco espirituosas, como eu. A graça está justamente na desgraça, que não é pouca. Imagine-se acordando num lugar estranho, em uma situação inusitada, sem memória alguma da noite anterior. Como diz o adágio popular, “... de bêbado não tem dono”. É, no mínimo, assustador.
Os homens têm – de longa data - este costume de fazer a despedida de solteiro com uma grande bebedeira, de preferência em um bordel. Como se a vida fosse acabar após o casamento e eles precisassem se exaurir no último dia. Enquanto as noivas fazem – ou faziam – sua despedida com um chá só para mulheres. Ocasião em que as amigas presenteavam com objetos para a cozinha, como se a vida dali para frente fosse se resumir àquele cômodo da casa.
As últimas décadas revolucionaram o comportamento feminino, e algumas festas de despedidas de solteiros já têm tido tratamentos diferenciados. Mulheres mais avançadas dão adeus à solteirice em alto estilo. Nada de esfregões ou panos de pratos. Muito champanhe e boa música, em companhias agradáveis. Tem até dançarino saindo de dentro do bolo. Sem grandes bebedeiras, tudo com muita discrição. E os homens mais moderados substituíram a farra com os amigos por elegantes drinques ao cair da noite, quando são presenteados com elementos para compor o bar. Talvez, numa alusão ao fato de que dali em diante só deverão beber em casa.
O filme é imperdível. Se ainda não viu, veja logo. Se for beber, não case; se for casar, não beba. É bom não esquecer a ressaca dos nossos amigos de Vegas. Este tipo de farra, em geral, só faz rir quem está do outro lado da tela.


CONTRATEMPOS


           
         Conheci um tempo em que havia dignidade na pobreza.
            O governo garantia escola a todos os filhos de famílias pobres. Escolas públicas boas, rigorosas no ensino e no comportamento, com profissionais de qualidade, onde meus irmãos e eu estudamos, assim como quase todas as crianças do bairro: filhos de funcionários públicos, engenheiros, comerciantes, domésticas, balconistas. Todos com as mesmas oportunidades. Na Porto Alegre de hoje, parece que apenas o Colégio Militar e o Colégio de Aplicação resistem à decadência do ensino público.
            O governo garantia também saúde às famílias pobres. O INPS funcionava, e tinha também o IAPI e o IPASE. As filas existiam, mas andavam. As consultas eram marcadas para a semana vindoura e os exames realizados a tempo de diagnosticar e tratar uma enfermidade. Cirurgias eram marcadas e realizadas na época certa, sem que ninguém precisasse recorrer aos veículos de comunicação social, ajuda de políticos ou pagamentos “por fora”. Talvez alguém tenha morrido na fila de espera. Talvez alguns diagnósticos não tenham sido corretos. Talvez as coisas não fossem perfeitas, afinal o sistema é falível. Mas, a grande maioria não passava pelos sofrimentos e humilhações impostas hoje aos que dependem da saúde pública. E, que eu me lembre, ninguém precisava gastar um terço do salário para pagar um plano de saúde.
            Naqueles tempos, pobres moravam em bairros simples, mas conseguiam pagar aluguel. As crianças brincavam nas calçadas, sem susto. Pais tinham empregos e trabalhavam em paz, sem medo que seus filhos estivessem sendo aliciados para algum tipo de tráfico, ou atingidos por balas perdidas. Pedintes, em geral, eram pessoas que sofriam das faculdades mentais, e viviam nas ruas arrastando um saco com seus poucos pertences.  Havia um ou dois por bairro e, em geral, eram conhecidos pelo apelido. O da minha rua foi durante muitos anos o Gordinho. E, quando ele sumia, todos se preocupavam. Nunca vi artistas se apresentando nos cruzamentos. Nem crianças ou adolescentes petulantes intimidando motoristas, até porque eram poucos os carros e quase não havia semáforos.
            Policiais militares postados nas esquinas ajudavam crianças e idosos a atravessarem as ruas. Eles eram cumprimentados pela população do bairro e tratados pelo nome. Eu não me lembro do nome do guarda da minha escola, mas me lembro de me sentir segura ao vê-lo parado na esquina, soprando seu apito. O povo não temia a polícia, só os bandidos.
            Tive uma infância simples. Família de poucas posses. Só duas bonecas. Uma Susie, quando já era quase adolescente. Roupas feitas em casa, reformadas e passadas de filho para filho. Mas, era uma vida digna e sossegada. Aos oito anos, eu podia brincar na calçada até tarde. Minha casa nunca teve grades. A porta só era chaveada à noite. Frequentávamos praças e parques sem medo, e podíamos andar de bonde sozinhos. Não havia sequestro relâmpago, bandido tinha cara de mau e o vizinho era o parente mais próximo. Além de tudo, a gente acreditava no futuro; tempos melhores avizinhavam-se.   
            Aquele futuro já chegou, pior.

CIDADE À FLOR DA PELE


Os contrastes da cidade de Porto Alegre podem ser observados em diversos aspectos. Em especial chama a atenção o clima instável, capaz de variar dez graus em um dia. Também a geografia privilegiada se opõe ao péssimo tratamento dado à natureza. Temos um rio escondido por detrás de um muro e parques que precisam ser murados para garantir segurança, conforto e lazer. É uma cidade que se pretende cosmopolita, mas ainda guarda ares de província. Tem fama de machista e, no entanto, em recente pesquisa publicada em jornal de grande circulação, os gaúchos foram apontados como os homens que mais colaboram com os trabalhos domésticos. Vivi dentro de casa o contraste do machista casado com mulher profissional e independente. Vi gaúcho velho cozinhar e limpar. E há quem diga que, quando jovem, trocou fraldas e preparou muitas mamadeiras.
Fui criada num bairro típico de classe média, com ruas muito arborizadas e próximo a um dos maiores parques da cidade. Numa época em que as crianças iam para lá sozinhas, atravessando ruas e correndo perigos que ainda não existiam. Passavam a tarde brincando, andando de bicicleta, sem sustos. Neste mesmo bairro, os pequenos ficavam nas calçadas até nove da noite, jogando amarelinha, brincando de pegador e esconde-esconde. Aqui, o maior contraste está no tempo que passou e trouxe com ele a violência das grandes metrópoles. As praças e parques não são mais frequentados por crianças desacompanhadas. Dependendo do dia e da hora, nem mesmo por adultos em pares. Os tranquilos bairros de nossa cidade transformaram-se em grandes condomínios, murados e com guaritas armadas. Lá, sim, as crianças de hoje podem andar de bicicleta e brincar de esconde-esconde.
Cresci sem conhecer o rio. Estudei na escola tudo sobre o Guaíba e seus afluentes, mas tinha uma idéia vaga sobre sua localização. Era como se pertencesse a outra cidade. Quando íamos ao centro, minha mãe apontava para aquele paredão sem cor, indicando que por ali havia um lindo rio. Também, quando viajávamos e cruzávamos a ponte, meu pai dizia: aqui está o rio Guaíba, nosso patrimônio maior. Ficava claro para mim que aquele rio estava fora dos meus limites geográficos. Quando, já adulta, decidi morar na zona sul, finalmente senti que aquela imensidão de águas profundas de alguma forma me pertencia. São duas cidades: a conturbada Porto Alegre do Norte, com seus viadutos, aeroporto e intenso comércio, e a Porto Alegre do Sul, tranquilo oásis de praias, clubes náuticos, calçadões e casas à beira do rio, que exibe espetáculos maravilhosos de velas ao por do sol.
Entretanto, o maior contraste desta cidade talvez seja o clássico encontro de Grêmio e Internacional. Amores, amores, futebol à parte. Pais, irmãos, primos e amigos são parceiros até a hora do jogo, quando se tornam inimigos, cada qual na sua trincheira, defendendo com ardor a camisa de seu time. O Grenal é uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro, mas não impede que gremistas e colorados se amem, se casem, sejam amigos, tomem cerveja juntos e convivam em paz fora dos estádios. Assim foi na minha infância: pai colorado e irmão gremista. Assim é no meu presente: filho colorado e filho gremista.
Os contrastes da cidade se refletem nos bairros e nos lares. A instabilidade do clima traz junto uma instabilidade emocional aos porto-alegrenses. Tão doces e amorosos em determinadas situações e tão duros e irascíveis em outras. O vento e a umidade do inverno na capital calejam seu povo no corpo e na alma. Mas, a visão das águas mansas do rio suaviza suas dores e coloca à flor da pele o lado lúdico e poético.

SANTA GULA


 Uma das cenas mais representativas do Cristianismo é a Santa Ceia, onde os apóstolos comem e bebem com Cristo pela última vez.  Talvez isto explique porque as festas cristãs mais comemoradas, até mesmo por quem não tem fé alguma, são aquelas onde se come e bebe com fartura. O simbolismo que o alimento tem na mesa origina-se das sociedades antigas, que passavam fome e encontravam na comida e na bebida uma forma de reverenciar a Deus.
Alguém sabe o dia de se homenagear São Miguel Arcanjo – aquele que enfrentou Lúcifer, defendendo a autoridade de Deus? É em 29 de setembro, mas poucos sabem, provavelmente porque a festividade não envolve gastronomia. No entanto, o dia de São Miguel Arcanjo está entre as principais comemorações do Cristianismo, que são seis.
A Páscoa - que ocorre no primeiro domingo depois da lua cheia, a partir de 21 de março (data do equinócio) – é considerada a data máxima cristã, pois comemora a ressurreição de Jesus Cristo. A passagem da morte para a vida eterna. Os principais símbolos são o ovo, que representa a vida, e o coelho, que representa a fertilidade. O chocolate foi introduzido no século XX, com propósitos comerciais, estabelecendo o consumo no mundo inteiro, através de bombons e ovos. Na Sexta-feira Santa, ao invés de jejuar, troca-se a carne vermelha por peixe e se bebe vinho além da conta. No domingo de Páscoa, a fim de recuperar as energias perdidas na quaresma, assa-se uma costela gorda, acompanhada de muita cerveja. E as crianças lambuzam-se de guloseimas.
Depois da Páscoa (50 dias) temos Pentecostes, outra data pouco lembrada no calendário atual. A comemoração tem origem no Antigo Testamento, como uma celebração da colheita, onde o povo oferecia a Deus os primeiros frutos da terra. Já no Novo Testamento perdeu a característica gastronômica, ficando representativa da celebração da efusão do Espírito Santo. Motivo pelo qual, provavelmente, perdeu a importância como festa popular.
Antes da Páscoa (40 dias) temos o Carnaval. Data limite para comer, beber e fazer sexo antes da quaresma – período de jejum e abstinência. A intenção foi levada tão a sério que, atualmente, o Carnaval, de origem cristã, já é considerado uma festa pagã.
Mas, a festa cristã mais gastronômica é, sem dúvida, a festa de São João – Festa Joanina, que terminou por virar festa junina, dando espaço para homenagear mais dois santos populares do mês de junho: São Pedro e Santo Antônio. Junho é a época da colheita do milho, logo as comidas típicas são feitas, em sua maioria, deste cereal. Pamonha, cuscuz, canjica, pipoca e bolo de milho são as estrelas da festa. Mas, também reinam com destaque a cocada, o pé-de-moleque, o pinhão, o quentão e a batata doce. São tantas as gostosuras que enchem os olhos de adultos e crianças nestas ocasiões, que é impossível enumerar todas.
E, por fim, temos o Natal, que, como todos sabem, comemora o nascimento de Jesus. A típica ceia natalina no Brasil inclui, além do peru e do panetone, presunto, chester, pernil de porco, rabanada, bolinho de bacalhau e nozes. Esta ilustra bem tudo o que foi dito. É uma festa que sobrevive bem sem o presépio, sem a missa do galo, sem a lembrança do Cristo. Mas, jamais sem os presentes e a comilança.

SEMPRE ALERTA


 O mundo está cheio deles. Você conhece pelo menos um. De qualquer idade. Homem, mulher, gay. Na família ou fora dela. Comandante ou subalterno. Pode ter um ao seu lado neste momento. São enjoados, implicantes e marcam presença de modo negativo e inesquecível. Os incautos, ingênuos e de boa fé devem consultar este breviário, que ajuda a reconhecê-los à distância. É uma forma de ficar alerta e não permitir que um deles estrague o seu dia.

Este ser inconveniente de A a Z:

Atira sempre a primeira pedra, mesmo que tenha telhado de vidro;
Briga por qualquer bobagem, não deixa passar nada;
Chato, mete-se onde não é chamado;
Diz o que quer e, poucas vezes, ouve o que não quer;
Ejeta suas farpas sem constrangimento;
Fraco de argumentos, apega-se a detalhes de pouca significação;
Gosta de contrariar, reclama por puro prazer;
Humor instável, irascível, irônico;
Incompatível com qualquer outro ser, da mesma ou de outra espécie;
Joio no meio do trigo, é preciso separar de imediato;
K – uma de suas implicâncias é esta letrinha inútil no nosso alfabeto;
Ladino, destrói uma boa auto-estima com apenas um comentário;
Menos ou mais implicante, com alguns ou com todos;
Ninguém é poupado, nem mãe, nem filho, nem o próprio reflexo;
Opressor, quando em postos de comando;
Persegue o erro, ignora o acerto;
Quizilento por natureza, sem esforço;
Rabugento como um velho e birrento como uma criança;
Semeador da discórdia por onde passa;
Tiroteia para todos os lados, pouco importa o alvo;
Urubu, sempre torcendo contra;
Visão unilateral, só vê o que lhe interessa;
Www.dicio.com.br/implicante/ - tire todas as suas dúvidas;
Xexelento, desagradável ao convívio;
Yin – o lado frio e obscuro da vida;
Zureta, completamente zureta.

CARA A CARA


 Se a vida é um jogo, a minha é uma partida de futebol empatada, pronta a ser decidida em um único pênalti. Chance única. Estamos aqui, no confronto final, meu inimigo e eu. Frente a frente, em completa desigualdade. Eu, defendendo meu gol; ele, invadindo ameaçadoramente a área. Nada entre nós, além da bola, digo, bala. Sem barreiras. Nenhum subterfúgio. Nem crenças, nem sonhos. Nada mais vai impedir a decisão desse jogo que empata nossas vidas há anos.
Percebo o suor do inimigo escorrendo pela testa. Tento fixar seus olhos, mas ele, propositalmente, os desvia para não demonstrar emoção. Eu, perplexo, paralisado. Inerte e atento ao mesmo tempo. Esperando pela ação que logo virá. Traçando em minha mente inquieta uma estratégia de defesa, que já sei será inútil. Por mais preparado que eu pense estar, a vantagem é toda dele: ele tem a bola no pé, e eu tento evitar o gol. Mas não é jogo; é vida real. Ele tem a arma e eu, o peito. O goleiro vai ao encontro da bola e eu vou fugir da bala, para não perder o jogo da vida. A arquibancada cheia nem respira, à espera do grande lance.
Não conversei, nem tentei dissuadi-lo do confronto enquanto era tempo. Foram muitos lances perdidos. Agora, é inevitável. Estou aqui, cara a cara com ele, acuado na murada do viaduto – a grande goleira. Se eu não conseguir evitar o tento, vou despencar com bola (ou bala) e tudo.
            Minha vida suspensa no cordão do apito do Juiz. Basta um sopro e ele encerra a partida.  

SER HUMANO


Tereza anda sempre com os vidros do carro fechados. Para não ser aborrecida por vendedores, larápios, pedintes, artistas e afins.  Na última sexta-feira, porém, abaixou o vidro para ver melhor a triste cena protagonizada por uma mulher de aparência miserável e um menino franzino, uns cinco ou seis anos.
Como em todas as manhãs, a criança percorria a fila de carros com vidros fumês bem fechados. Em alguns, batia no vidro com a mãozinha suja. Apenas um motorista abriu uma fresta no vidro para alcançar uma moeda pequena. Não chegou até o carro dela. O sinal abriu antes. O garoto correu até uma mendiga que estava jogada como uma ratazana de esgoto ao pé do viaduto. Entregou-lhe a única moeda e recebeu um tapa na cara como agradecimento. Tereza acelerou lentamente, emocionada, como se estivesse saindo de um transe. A criança descalça e maltratada fez com que pensasse no conforto de sua casa, na farta mesa e na quantidade de brinquedos que faziam a alegria de seus filhos.
Esta e tantas outras cenas semelhantes faziam parte de suas manhãs de segundas às sextas-feiras. Já deveria estar acostumada, e estava. Mas aquela era uma manhã diferente. Estava mais vulnerável. Talvez fosse por causa da TPM. Talvez estivesse se humanizando novamente. O tempo, a carestia, o medo, interesses próprios, a corrida do ouro, tudo isto transforma as pessoas. Adormece planos e sonhos de melhorar o mundo. Tereza percebe que foi se desumanizando aos poucos. Até chegar ao extremo de achar natural que crianças de cinco ou seis anos andem perambulando entre os carros, implorando por umas moedas, enquanto governantes e políticos fazem conchavos sob a luz dos holofotes.
Seguiu seu caminho. Mas, não era mais a mesma mulher; algo havia lhe tocado o coração e a consciência.
Sábado, em casa, repassou a cena na cabeça muitas vezes. Abriu gavetas, remexeu papeis, até que encontrou seu diploma. Ali estava seu nome em letras douradas, Tereza Lopes de Souza, logo abaixo, Bacharel em Assistência Social. Lembrou-se da formatura e do juramento. Sentiu vergonha. Vergonha do alto cargo que ocupava no Gabinete do Governador. Vergonha de ser testemunha de tantos desvios de verbas. Vergonha de participar de tantas reuniões inúteis ou com pautas de interesses escusos. E, por sentir vergonha, decidiu mudar. Deu novo rumo ao seu trabalho, à sua família, à sua vida.
E não importam, para o encerramento desta crônica, quais foram as transformações que ocorreram na vida de Tereza, nem qual foi a sua contribuição para a melhoria do abandono na infância. Importa que ela recuperou a capacidade de se solidarizar, que é o que nos move na direção do outro, e de se indignar, o que nos leva a agir.


VIRANDO O JOGO


A televisão é taxada de alienante e emburrecedora. Há quem se orgulhe de dizer que não assiste televisão. Porque faz merchandising, transforma pessoas comuns em celebridades do dia para a noite, vicia, desagrega e tudo o mais. Novelas, então, costumam ser as vilãs. Ou porque retratam histórias improváveis de acontecer, ou, pelo contrário, porque são realistas demais. Apresentando temas nem sempre bem aceitos socialmente, tais como a união entre pessoas do mesmo sexo, ou a existência de vida após a morte.
Se for entretenimento em grupo, a tevê pode servir de pretexto para que se traga para o núcleo familiar a discussão de assuntos polêmicos, apresentados diariamente. Da mesma forma que acompanhamos a novela das sete, acompanhamos o desenrolar de uma ocorrência policial, a decisão de um campeonato de futebol, ou o desfecho de uma prova num reality show. Em todos os casos o que nos move é a curiosidade.
            Na minha casa, assistimos muito à televisão. Desde noticiários, até novelas e programas menos nobres. Assistimos todos juntos, e comentamos. Trocamos algumas alfinetadas, que rendem boa prosa. E muita reflexão. Os acontecimentos, fictícios ou não, da tevê trazem à baila assuntos que envolvem ética, comportamento, socialização, direitos e deveres. Que oportunidade melhor teria eu, como mãe, de testar meus jovens filhos sobre tudo o que lhes venho ensinando? As situações que se apresentam nas novelas me dão a oportunidade de reforçar conceitos, sem a entediante prática do sermão. Desta forma, discutimos livremente sobre drogas, sexo, infidelidade, honestidade, respeito e tantos outros temas difíceis de conversar com filhos adolescentes. A ficção faz com que os assuntos sejam tratados com mais leveza. Educar fica mais fácil, divertido e casual. Eles aprendem como devem se comportar quando vivenciarem uma situação semelhante. Ou, pelo menos, como a mãe gostaria que se comportassem.
            Não pretendo tornar-me uma defensora das telenovelas, mas entendo que só se aliena quem quer. A novela é uma história inventada, mas com fortes nuances da vida real. Retrata situações que, muitas vezes, estão presentes no dia-a-dia da maioria de nós. Da mesma forma que uso os fatos reais apresentados no jornal para discutir questões éticas com meus filhos, aproveito-me também de situações fictícias, e faço delas minhas aliadas na difícil tarefa de formar cidadãos de bem.
            Toda e qualquer circunstância de vida pode alienar ou emburrecer. Depende da capacidade crítica de cada um. Assim como um revés financeiro, uma perda, um problema pessoal de saúde, enfrentados com coragem e sabedoria, podem nos fortalecer, também um olhar crítico sobre programas menos nobres, que parecem não acrescentar nada, pode resultar numa boa oportunidade de diálogo, fortalecendo as relações familiares e valorizando princípios morais e afetivos.