Conheci um tempo em que havia
dignidade na pobreza.
O governo garantia
escola a todos os filhos de famílias pobres. Escolas públicas boas, rigorosas
no ensino e no comportamento, com profissionais de qualidade, onde meus irmãos
e eu estudamos, assim como quase todas as crianças do bairro: filhos de
funcionários públicos, engenheiros, comerciantes, domésticas, balconistas.
Todos com as mesmas oportunidades. Na Porto Alegre de hoje, parece que apenas o
Colégio Militar e o Colégio de Aplicação resistem à decadência do ensino
público.
O governo garantia
também saúde às famílias pobres. O INPS funcionava, e tinha também o IAPI e o
IPASE. As filas existiam, mas andavam. As consultas eram marcadas para a semana
vindoura e os exames realizados a tempo de diagnosticar e tratar uma
enfermidade. Cirurgias eram marcadas e realizadas na época certa, sem que
ninguém precisasse recorrer aos veículos de comunicação social, ajuda de
políticos ou pagamentos “por fora”. Talvez alguém tenha morrido na fila de
espera. Talvez alguns diagnósticos não tenham sido corretos. Talvez as coisas
não fossem perfeitas, afinal o sistema é falível. Mas, a grande maioria não
passava pelos sofrimentos e humilhações impostas hoje aos que dependem da saúde
pública. E, que eu me lembre, ninguém precisava gastar um terço do salário para
pagar um plano de saúde.
Naqueles tempos,
pobres moravam em bairros simples, mas conseguiam pagar aluguel. As crianças
brincavam nas calçadas, sem susto. Pais tinham empregos e trabalhavam em paz,
sem medo que seus filhos estivessem sendo aliciados para algum tipo de tráfico,
ou atingidos por balas perdidas. Pedintes, em geral, eram pessoas que sofriam
das faculdades mentais, e viviam nas ruas arrastando um saco com seus poucos
pertences. Havia um ou dois por bairro
e, em geral, eram conhecidos pelo apelido. O da minha rua foi durante muitos
anos o Gordinho. E, quando ele sumia, todos se preocupavam. Nunca vi artistas
se apresentando nos cruzamentos. Nem crianças ou adolescentes petulantes
intimidando motoristas, até porque eram poucos os carros e quase não havia semáforos.
Policiais militares postados
nas esquinas ajudavam crianças e idosos a atravessarem as ruas. Eles eram cumprimentados
pela população do bairro e tratados pelo nome. Eu não me lembro do nome do
guarda da minha escola, mas me lembro de me sentir segura ao vê-lo parado na
esquina, soprando seu apito. O povo não temia a polícia, só os bandidos.
Tive uma infância simples.
Família de poucas posses. Só duas bonecas. Uma Susie, quando já era quase adolescente.
Roupas feitas em casa, reformadas e passadas de filho para filho. Mas, era uma
vida digna e sossegada. Aos oito anos, eu podia brincar na calçada até tarde. Minha
casa nunca teve grades. A porta só era chaveada à noite. Frequentávamos praças
e parques sem medo, e podíamos andar de bonde sozinhos. Não havia sequestro
relâmpago, bandido tinha cara de mau e o vizinho era o parente mais próximo. Além
de tudo, a gente acreditava no futuro; tempos melhores avizinhavam-se.
Aquele futuro já
chegou, pior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário