quarta-feira, 30 de maio de 2012

CONTRATEMPOS


           
         Conheci um tempo em que havia dignidade na pobreza.
            O governo garantia escola a todos os filhos de famílias pobres. Escolas públicas boas, rigorosas no ensino e no comportamento, com profissionais de qualidade, onde meus irmãos e eu estudamos, assim como quase todas as crianças do bairro: filhos de funcionários públicos, engenheiros, comerciantes, domésticas, balconistas. Todos com as mesmas oportunidades. Na Porto Alegre de hoje, parece que apenas o Colégio Militar e o Colégio de Aplicação resistem à decadência do ensino público.
            O governo garantia também saúde às famílias pobres. O INPS funcionava, e tinha também o IAPI e o IPASE. As filas existiam, mas andavam. As consultas eram marcadas para a semana vindoura e os exames realizados a tempo de diagnosticar e tratar uma enfermidade. Cirurgias eram marcadas e realizadas na época certa, sem que ninguém precisasse recorrer aos veículos de comunicação social, ajuda de políticos ou pagamentos “por fora”. Talvez alguém tenha morrido na fila de espera. Talvez alguns diagnósticos não tenham sido corretos. Talvez as coisas não fossem perfeitas, afinal o sistema é falível. Mas, a grande maioria não passava pelos sofrimentos e humilhações impostas hoje aos que dependem da saúde pública. E, que eu me lembre, ninguém precisava gastar um terço do salário para pagar um plano de saúde.
            Naqueles tempos, pobres moravam em bairros simples, mas conseguiam pagar aluguel. As crianças brincavam nas calçadas, sem susto. Pais tinham empregos e trabalhavam em paz, sem medo que seus filhos estivessem sendo aliciados para algum tipo de tráfico, ou atingidos por balas perdidas. Pedintes, em geral, eram pessoas que sofriam das faculdades mentais, e viviam nas ruas arrastando um saco com seus poucos pertences.  Havia um ou dois por bairro e, em geral, eram conhecidos pelo apelido. O da minha rua foi durante muitos anos o Gordinho. E, quando ele sumia, todos se preocupavam. Nunca vi artistas se apresentando nos cruzamentos. Nem crianças ou adolescentes petulantes intimidando motoristas, até porque eram poucos os carros e quase não havia semáforos.
            Policiais militares postados nas esquinas ajudavam crianças e idosos a atravessarem as ruas. Eles eram cumprimentados pela população do bairro e tratados pelo nome. Eu não me lembro do nome do guarda da minha escola, mas me lembro de me sentir segura ao vê-lo parado na esquina, soprando seu apito. O povo não temia a polícia, só os bandidos.
            Tive uma infância simples. Família de poucas posses. Só duas bonecas. Uma Susie, quando já era quase adolescente. Roupas feitas em casa, reformadas e passadas de filho para filho. Mas, era uma vida digna e sossegada. Aos oito anos, eu podia brincar na calçada até tarde. Minha casa nunca teve grades. A porta só era chaveada à noite. Frequentávamos praças e parques sem medo, e podíamos andar de bonde sozinhos. Não havia sequestro relâmpago, bandido tinha cara de mau e o vizinho era o parente mais próximo. Além de tudo, a gente acreditava no futuro; tempos melhores avizinhavam-se.   
            Aquele futuro já chegou, pior.

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