Mesmo o amor que não
compensa
É melhor que a solidão
(Vinícius de Moraes)
A
velha senhora assistia a vida passar sob sua janela, acomodada em sua cadeira
de rodas, descontente com o preço da longevidade. O olhar lânguido e nostálgico,
vez por outra, misturava tempos e espaços. Cenas de sua própria existência
passavam pela vidraça. Lembranças onerosas. Juventude, saúde e soberba – tudo
perdido. A solidão lhe doía nos ossos. Os filhos a abandonaram naquele triste
lugar. Um depósito de velhos – dizia para si mesma.
A cuidadora interrompeu suas
lembranças com um iogurte na mão:
-
Dona Júlia, saia desta janela, hora do lanche!
Tomou
o pote nas mãos trêmulas. Levou lentamente a solução rosada até os lábios envelhecidos.
Reviu o sorriso encantador de Júnior quando ela enchia os potinhos coloridos
que ele adorava. Fabricava em casa iogurte de vários sabores para as crianças.
Não havia ainda as facilidades do supermercado. E eles sempre brigavam pelos de
morango.
Era
bem tratada naquela casa. Uma das moças insistia em fazê-la usar batom aos
domingos – para esperar as visitas que nunca vinham. Os filhos só apareciam em
ocasiões muito especiais. No aniversário, no dia de Natal e no dia das Mães. Os
netos, não os via há anos. Soube que já era bisavó, mas nem tinha certeza se
era verdade. Muitas vezes confundia sonhos com vida real, presente com passado.
Andava limpa, cheirosa, bem medicada e
bem alimentada. Melhor até do que nos tempos da Tânia - a filha solteira que ficou
com ela até morrer. Não era muito jeitosa na função de cuidadora; gostava mesmo
era de noitadas. Beber, dançar, namorar, dormir até tarde. Desde que o marido
morrera, Dona Júlia passou a depender dos filhos. Sua soberba dificultou o
relacionamento com as noras. Intolerante com os netos, foi-se tornando um peso
para todos.
A
bela senhora, altiva e elegante, foi sendo substituída rapidamente por uma nova
personagem: a frágil viúva, dependente da benevolência alheia, vitimada e
triste. Até que foi enviada - assim mesmo, como um pacote - para a casa da
filha solteira. A impulsiva Tânia, ovelha negra para os irmãos, recebeu a mãe
sem se opor. Não porque isto lhe desse prazer, mas apenas porque não se
importava. Viveram juntas longos anos, num misto de amor e ódio tranqüilo.
Desde aquela época, Dona Júlia foi perdendo o contato com os outros filhos e
netos. Limitavam-se a telefonemas esparsos, rápidos e de assuntos corriqueiros.
Quando
Tânia morreu num acidente de carro, morreu um pouco dela também. Os outros filhos ficaram atônitos com a
sobrevida da velha. Cochichavam pelos cantos.
E agora? Quem fica com ela? Não
havendo ninguém disposto ao sacrifício, optaram pela Casa Geriátrica. Dividiram
as despesas entre todos e se livraram do problema. Para eles a vida seguiu seu
curso normal.
Mas,
a triste senhora persegue o passado pela vidraça da janela. Não quer perfume,
nem batom aos domingos. Só quer o acolhimento de um abraço e o calor de um afago.
Junta as mãos em prece, num gesto de carinho em si mesma, enquanto espera por outras
mãos para segurar.