sábado, 3 de maio de 2014

PARTILHA



Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão
 (Vinícius de Moraes)

            A velha senhora assistia a vida passar sob sua janela, acomodada em sua cadeira de rodas, descontente com o preço da longevidade. O olhar lânguido e nostálgico, vez por outra, misturava tempos e espaços. Cenas de sua própria existência passavam pela vidraça. Lembranças onerosas. Juventude, saúde e soberba – tudo perdido. A solidão lhe doía nos ossos. Os filhos a abandonaram naquele triste lugar. Um depósito de velhos – dizia para si mesma.
            A cuidadora interrompeu suas lembranças com um iogurte na mão:
- Dona Júlia, saia desta janela, hora do lanche!
Tomou o pote nas mãos trêmulas. Levou lentamente a solução rosada até os lábios envelhecidos. Reviu o sorriso encantador de Júnior quando ela enchia os potinhos coloridos que ele adorava. Fabricava em casa iogurte de vários sabores para as crianças. Não havia ainda as facilidades do supermercado. E eles sempre brigavam pelos de morango.
Era bem tratada naquela casa. Uma das moças insistia em fazê-la usar batom aos domingos – para esperar as visitas que nunca vinham. Os filhos só apareciam em ocasiões muito especiais. No aniversário, no dia de Natal e no dia das Mães. Os netos, não os via há anos. Soube que já era bisavó, mas nem tinha certeza se era verdade. Muitas vezes confundia sonhos com vida real, presente com passado.  Andava limpa, cheirosa, bem medicada e bem alimentada. Melhor até do que nos tempos da Tânia - a filha solteira que ficou com ela até morrer. Não era muito jeitosa na função de cuidadora; gostava mesmo era de noitadas. Beber, dançar, namorar, dormir até tarde. Desde que o marido morrera, Dona Júlia passou a depender dos filhos. Sua soberba dificultou o relacionamento com as noras. Intolerante com os netos, foi-se tornando um peso para todos.
A bela senhora, altiva e elegante, foi sendo substituída rapidamente por uma nova personagem: a frágil viúva, dependente da benevolência alheia, vitimada e triste. Até que foi enviada - assim mesmo, como um pacote - para a casa da filha solteira. A impulsiva Tânia, ovelha negra para os irmãos, recebeu a mãe sem se opor. Não porque isto lhe desse prazer, mas apenas porque não se importava. Viveram juntas longos anos, num misto de amor e ódio tranqüilo. Desde aquela época, Dona Júlia foi perdendo o contato com os outros filhos e netos. Limitavam-se a telefonemas esparsos, rápidos e de assuntos corriqueiros.
Quando Tânia morreu num acidente de carro, morreu um pouco dela também.  Os outros filhos ficaram atônitos com a sobrevida da velha. Cochichavam pelos cantos. E agora? Quem fica com ela?  Não havendo ninguém disposto ao sacrifício, optaram pela Casa Geriátrica. Dividiram as despesas entre todos e se livraram do problema. Para eles a vida seguiu seu curso normal.
Mas, a triste senhora persegue o passado pela vidraça da janela. Não quer perfume, nem batom aos domingos. Só quer o acolhimento de um abraço e o calor de um afago. Junta as mãos em prece, num gesto de carinho em si mesma, enquanto espera por outras mãos para segurar.

QUEM COMEU A CARNE TEM QUE ROER OS OSSOS



Você tem que vir comigo em meu caminho
Mesmo que meu caminho seja triste pra você
(Vinícius de Moraes)


Miguel e Sueli foram casados por longas décadas. Um casal feliz e parceiro. Exemplo para muitos outros. Criaram seus três filhos com dificuldades, mas com muita alegria. Casa cheia de amigos sempre. Ela cumpria com esmero sua dupla jornada: secretária durante o dia e dona-de-casa à noite e fins-de-semana. Mas ele fazia por merecer. Cuidava de todos os consertos domésticos, era atencioso com os filhos e passava os sábados fuçando no motor do carro velho. Sempre pronto para levar e buscar a meninada nas festas, onde brilhavam com vestidos feitos ou reformados na máquina de costura da mãe.
Filhos formados foram um para cada lado, e o casal já aposentado passou a viajar mais. Visitavam filhos e netos, passavam algum tempo com parentes distantes, conhecendo lugares novos e reconhecendo velhos caminhos. A vida parecia um sonho bom, até que Sueli teve um AVC. O pesadelo durou meses. Um diagnóstico terrível, sequelas graves, tratamentos difíceis, desesperança e luta. Enfim, a superação. Sueli recuperou boa parte dos movimentos do lado afetado, com a ajuda de muita fisioterapia. A vontade de viver e continuar sendo feliz eram maiores do que tudo.
Mas, enquanto Sueli, guerreira, dedicava-se integralmente a recuperação de suas forças físicas e mentais, Miguel, carente, dedicava-se aos prazeres mundanos. Era visto em bailões durante as tardes e em mesas de bar com novos amigos nas sextas à noite. Distanciava-se cada vez mais de casa. Começou a sair com Liege, atendente do bar do Ananias. Ela lhe dava atenção, carinho e sexo. Dançava e bebia com ele. Quando Sueli voltou a andar, usava muletas e arrastava uma perna – não dançaria nunca mais. Passou a evitar a mulher, alegando estar impotente. Ela, inconformada com o rumo que a vida do casal estava tomando, cobrava do marido mais atenção e sugeria que procurasse um médico.
Não demorou para que alguém lhe soprasse a verdade. E Sueli foi conferir. Pegou o marido com a boca na botija. Furiosa e humilhada, mandou-o embora de casa. Que fosse morar na kitinete da velha assanhada. Pego de surpresa, sem tempo para raciocinar, teve que ir. Liege também não esperava dividir seu pequeno espaço com um homem àquelas alturas da vida. Passada a tempestade, baixada a poeira, por influência dos filhos, vergonha dos parentes e amigos, Miguel voltou para casa. Mas nada seria como antes. Sueli, cheia de razão, passou a menosprezar Miguel diariamente. Chamava-o de covarde, traiçoeiro e incapaz de gerir a própria vida. Liege estava sempre entre eles como o fantasma da traição.
Tanta mágoa foi destruindo o que restava de saúde em Sueli. E seguiram-se mais outros AVCs, de variadas intensidades. Até que ela não pode mais sair da cama. Parou de falar, passou a usar sondas, e só dava sinais de consciência quando, ao sentir a aproximação do marido, seus olhos cuspiam fogo. Ele, acuado em sua própria casa, resolveu consultar os filhos. Decidiram que a melhor solução seria uma clínica de geriatria para ela e a liberdade para ele. Miguel alugou a casa, e foi viver com Liege - num apartamento de três dormitórios, com churrasqueira na sacada.
Envelheceu, arrumou uma bronquite crônica, reumatismo, pressão alta, problemas na próstata e uma artrite no joelho que não lhe deixaria mais dançar. Dizem as vizinhas solidárias que é praga da Sueli, que jurou que nunca daria a ele o benefício da viuvez. Firme e forte, com seus olhos de fogo, ela espera pacientemente a hora do reencontro.

A ONDA E O TEMPO



Muitos dias se passaram
Muitos dias passarão
À noite segue-se o dia
E assim os dias se vão
(Vinícius de Moraes)

A jovem caminha pela praia sentindo nos pés a lambida fria da onda. Olhar perdido no horizonte, ela procura em vão pelo amor de outrora. Afasta-se um pouco da orla e, espraiando a canga colorida na areia clara, senta-se numa posição de yoga a contemplar o nada.

Ela se equilibra na linha do tempo como o surfista sobre a prancha.



O dia amanhecera lindo. Os primeiros raios de sol cingiam a praia deserta àquela hora da manhã.  Tratava-se daquele preciso momento em que uns ainda não tinham levantado para iniciar o dia, e outros recém chegavam às casas para encerrar a noite. Eles deveriam fazer parte do segundo grupo, porém, decidiram emendar a noite no dia. Bêbados de contentamento, correram de mãos dadas pelas pequenas dunas de areia, fizeram juras de amor e trocaram beijos apaixonados. Aquele dia marcara para sempre sua vida.



O entardecer na praia também é lindo, ela pensa. Uma brisa suave acaricia seu corpo seminu e, imediatamente, a jovem estremece. Avista ao longe uma prancha erguer-se na ponta de uma onda. E, sobre a prancha, o rapaz moreno de braços abertos, como se fosse um pássaro gigante alçando vôo. Os olhos dela marejam e assumem um brilho diferente.



Conheceram-se na praia dois verões antes. Desde então foram vistos sempre juntos. Ele nas ondas, ela na areia. O gosto pela natureza, o prazer de curtir o mar e o sol foi o que mais os aproximou. Não eram da noite, eram do dia. Mas, como todos os jovens, participavam de festas com amigos. Não eram do álcool, eram do refrigerante, mas nas festas até bebiam um pouco. Amavam-se e tinham sonhos.

Naquela madrugada fatal tinham bebido. Depois das brincadeiras dos apaixonados, ela jogara seu corpo cansado e sonolento na areia macia. Ao seu lado, ele tentava fazer com que se levantasse. Vamos curar esta ressaca no mar, argumentava. Mas ela preferiu a areia. Ele, então, levantou-se e correu na direção do seu destino.



Há longos anos ela arrasta sua canga na mesma areia, esperando que o mar devolva o que lhe tirou. Afinal, sabe que a onda que lambe seus pés hoje pode ser a mesma que, antes, engoliu seu amor.

UM HOMEM, UMA QUIMERA



Queria dizer coisas simples, bem simples
Que não ferissem teus ouvidos, minha mãe.
(Vinícius de Moraes)

Reinaldo voltava para casa, após longos anos de ausência. Para a casa onde nascera e crescera. As recordações enchiam-no de emoções agridoces. As tortuosas goiabeiras, onde trepava para colher as frutas que resultavam naquele doce tão gostoso. A mãe e a avó (já falecida), com lenços coloridos nas cabeças, revolvendo a mistura no enorme tacho de cobre. Nestas ocasiões eram duas bruxas, que mexiam o caldeirão de asas de morcego, no castelo assombrado de suas histórias em quadrinhos. Mas, quando elas chegavam com a goiabada pronta e açucarada, imediatamente transformavam-se em fadas.
Lembranças doces misturavam-se com amarguras do passado. Foi uma época difícil para ele. Fingia e mentia o tempo todo. Era necessário. Assim, protegia sua família e a si mesmo. Se soubessem como ele era de verdade, provavelmente não teria sido respeitado nem pelo próprio pai. E todos teriam sofrido as conseqüências de seu modo diferente de ser. A cidadezinha era medíocre.
O primeiro passo para a liberdade deu ao se casar com Alice – a tímida menina de tranças que vivia a espiá-lo por detrás da cortina. Completaram-se na insegurança e no desejo de superação. Estabeleceram-se na cidade vizinha com um comércio de móveis, que logo se tornou forte e lucrativo. Tiveram uma filha e dedicaram-se por inteiro ao negócio da família. Mas, logo, Reinaldo percebeu que não poderia levar adiante aquele teatro. Partiu rápido, sem olhar para trás, deixando a loja e a menina para Alice.
Na cidade grande e distante, onde era apenas mais um, enfim, pode assumir sua homossexualidade. Superou todos os preconceitos, inclusive os seus. Viveu muitos amores. Sinceros e falsos. Sublimes e promíscuos. Assumiu as rédeas de sua vida e passou ele mesmo a escrever sua história. Sem fingir, sem mentir. Tornou-se um empresário respeitado, tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Encontrou um amor verdadeiro e vivia feliz. Mantinha contatos virtuais com a filha, que poucas vezes esteve na capital. As novidades para ela eram tantas que não foi difícil para Reinaldo manter as aparências. O pai morrera quando ainda estava casado com Alice. Com a mãe fazia contato telefônico freqüente, mas não a via há alguns anos.
Esteve calado durante quase todo o percurso. Da capital até a sua cidadezinha eram umas seis horas de carro. Benta, a menina órfã que a mãe criou, havia se casado com um paraguaio e ia embora para a terra dele. A mãe, idosa, reclamava a presença do filho. A mente que vagava entre o passado e o futuro foi despertada pela voz do companheiro de viagem:
- Como vai ser, Rei?
- Sou filho único. Ela precisa de mim... – respondeu reticente.
- E ela vai me aceitar? Já sabe de nós?
Reinaldo não respondeu, perdido que estava em seus pensamentos. Afloravam memórias daqueles tempos em que não ousava ferir os ouvidos de sua mãe. Fora um jovem frágil e inseguro. Mas, agora, tornara-se homem.

DE PORTAS ABERTAS




A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias.

(Vinícius de Moraes)
 




Era meados de junho. Como em todo o final de estação, Helena arrumava os armários e separava o que não queria mais para entregar a instituições de caridade. Fazia isto com o enorme prazer de estar ajudando pessoas que nem mesmo conhecia. Separava cada peça com verdadeira dedicação - lavava, passava, cosia, pregava botões que faltavam e, por fim, acomodava tudo em sacolas. Separava as dela, as do marido, as das crianças, tudo catalogado, conforme tamanho e sexo.

Este ano decidiu ir mais além. Baixou os livros da estante colegial dos filhos decidida a dividir aquele mundo de fantasia com outras crianças. Havia livros infantis que seus meninos não leriam mais – passaram para a fase juvenil. E havia livros juvenis repetidos, resultado da desatenção na hora da compra do material escolar dos menores: Pedro Bandeira com suas Drogas – A Droga da Obediência, A Droga do Amor. Alguns clássicos em edições mais apropriadas para jovens leitores. E aqueles da coleção Para Gostar de Ler, que ela mesma lia quando eles deixavam rolando pela sala.

Cada livro fazia-a lembrar de uma história ou de um momento vivido com a família. Percebia o apego e a dificuldade que teria para doá-los. Principalmente os infantis.  Pinóquio e o Soldadinho de Chumbo pareciam estar lá de corpo presente, prontos para levar Cinderela ao baile, ou salvar Chapeuzinho Vermelho do ataque do Lobo Mau. Separou alguns, consertando-lhes as capas que as crianças estragavam, mesmo com todas as recomendações. Tudo corria bem, apesar da nostalgia.

Ao pegar um exemplar muito surrado de O Pequeno Príncipe, deixou cair um papelzinho azul claro. Uma letra bonita e delicada dizia palavras de carinho e encerrava com a seguinte frase: Você é eternamente responsável por aquilo que cativa. Imediatamente deu-se conta de que aquele bilhetinho enfeitado de borboletas cor de rosa havia sido escrito para ela. Fazia parte da sua históra. O livro fora presente da melhor amiga da infância e viera com aquela dedicatória. Com o tempo e o uso, o papelzinho deve ter-se descolado. O mesmo tempo impiedoso que havia descolado as duas amigas. Distantes há tantos anos e, agora, unidas por uma frase num pedaço de papel antigo.

As portas abertas da memória trouxeram a infância de volta. E elas brincaram, conversaram, fizeram juras de amizade eterna. Apostaram corrida de bicicleta. Vestiram as bonecas para o desfile de modas. Usaram a maquiagem da mãe. Debutaram juntas. Descobriram o primeiro amor. Então, Helena despertou daquele instante de magia. Paulo Ricardo era o nome dele. O pivô de tudo. Por causa deste primeiro amor, brigaram a única vez. O rapaz, belo e inconseqüente, que não sabia o que queria, estragou uma amizade de anos entre duas garotas. Namorou uma. Depois, a outra. Voltou para a primeira, tentou ter as duas, até encontrar uma terceira com quem ficou durante muito tempo.

Os corações adolescentes, magoados, nunca conseguiram refazer a amizade. Cada uma seguiu seu caminho e nunca mais se encontraram. Helena formou-se dentista e casou com um colega. Era uma mulher feliz e realizada. O papelzinho azul claro, entretanto, havia mexido no fundo de uma gaveta. Não poderia mais fechá-la facilmente. Levantou da poltrona onde se encontrava, coberta de livros e lembranças; sentou-se diante do computador e digitou o nome da amiga. Era hora do resgate.