quarta-feira, 30 de maio de 2012

CIDADE À FLOR DA PELE


Os contrastes da cidade de Porto Alegre podem ser observados em diversos aspectos. Em especial chama a atenção o clima instável, capaz de variar dez graus em um dia. Também a geografia privilegiada se opõe ao péssimo tratamento dado à natureza. Temos um rio escondido por detrás de um muro e parques que precisam ser murados para garantir segurança, conforto e lazer. É uma cidade que se pretende cosmopolita, mas ainda guarda ares de província. Tem fama de machista e, no entanto, em recente pesquisa publicada em jornal de grande circulação, os gaúchos foram apontados como os homens que mais colaboram com os trabalhos domésticos. Vivi dentro de casa o contraste do machista casado com mulher profissional e independente. Vi gaúcho velho cozinhar e limpar. E há quem diga que, quando jovem, trocou fraldas e preparou muitas mamadeiras.
Fui criada num bairro típico de classe média, com ruas muito arborizadas e próximo a um dos maiores parques da cidade. Numa época em que as crianças iam para lá sozinhas, atravessando ruas e correndo perigos que ainda não existiam. Passavam a tarde brincando, andando de bicicleta, sem sustos. Neste mesmo bairro, os pequenos ficavam nas calçadas até nove da noite, jogando amarelinha, brincando de pegador e esconde-esconde. Aqui, o maior contraste está no tempo que passou e trouxe com ele a violência das grandes metrópoles. As praças e parques não são mais frequentados por crianças desacompanhadas. Dependendo do dia e da hora, nem mesmo por adultos em pares. Os tranquilos bairros de nossa cidade transformaram-se em grandes condomínios, murados e com guaritas armadas. Lá, sim, as crianças de hoje podem andar de bicicleta e brincar de esconde-esconde.
Cresci sem conhecer o rio. Estudei na escola tudo sobre o Guaíba e seus afluentes, mas tinha uma idéia vaga sobre sua localização. Era como se pertencesse a outra cidade. Quando íamos ao centro, minha mãe apontava para aquele paredão sem cor, indicando que por ali havia um lindo rio. Também, quando viajávamos e cruzávamos a ponte, meu pai dizia: aqui está o rio Guaíba, nosso patrimônio maior. Ficava claro para mim que aquele rio estava fora dos meus limites geográficos. Quando, já adulta, decidi morar na zona sul, finalmente senti que aquela imensidão de águas profundas de alguma forma me pertencia. São duas cidades: a conturbada Porto Alegre do Norte, com seus viadutos, aeroporto e intenso comércio, e a Porto Alegre do Sul, tranquilo oásis de praias, clubes náuticos, calçadões e casas à beira do rio, que exibe espetáculos maravilhosos de velas ao por do sol.
Entretanto, o maior contraste desta cidade talvez seja o clássico encontro de Grêmio e Internacional. Amores, amores, futebol à parte. Pais, irmãos, primos e amigos são parceiros até a hora do jogo, quando se tornam inimigos, cada qual na sua trincheira, defendendo com ardor a camisa de seu time. O Grenal é uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro, mas não impede que gremistas e colorados se amem, se casem, sejam amigos, tomem cerveja juntos e convivam em paz fora dos estádios. Assim foi na minha infância: pai colorado e irmão gremista. Assim é no meu presente: filho colorado e filho gremista.
Os contrastes da cidade se refletem nos bairros e nos lares. A instabilidade do clima traz junto uma instabilidade emocional aos porto-alegrenses. Tão doces e amorosos em determinadas situações e tão duros e irascíveis em outras. O vento e a umidade do inverno na capital calejam seu povo no corpo e na alma. Mas, a visão das águas mansas do rio suaviza suas dores e coloca à flor da pele o lado lúdico e poético.

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