domingo, 13 de maio de 2012

ANTES, DURANTE OU DEPOIS?



O título pode ser o começo ou o fim. Há vários tipos, que variam desde o mais nobre: o título de eleitor, até o mais humilhante: o título protestado.  Nestes dois casos título é sinônimo de arma. Tudo depende de como o portador vai usá-la.
Há títulos sem muita significação, que não passam de rótulos momentâneos, como Miss Brotinho, Rei do Gado, Barão da Maconha. O tempo se encarrega de apagar e substituir os personagens dessa história. Significativos são os títulos de conhecimento, que fazem parte do grupo dos nobres, como Bacharel, Mestre, Especialista e Doutor. No grupo dos humilhantes estão os depreciativos, como Musa da Beleza Interior, Campeão de Nada, Rainha da Gafe, Asno Rei. Está claro que o povo brasileiro gosta muito de títulos – resquício dos tempos coloniais e imperiais. O Rei do Futebol, o Rei da Música e a Rainha dos Baixinhos, ao que parece, já entraram para a história do Brasil, ao lado do Rei Dom João VI. Mas, nem sempre o detentor do título é merecedor da honra ou zombaria. Existe muito rei sem coroa mais digno de um título do que reis de monarquias verdadeiras. Conheço muitos Doutores que sequer iniciaram o bacharelado. Também, diversos títulos pejorativos são atribuídos com o único intuito de denegrir algum inocente e beneficiar seus desafetos.
O título com o qual estou mais familiarizada atualmente é o título literário. Assim como tantos outros, pode promover ou destruir seu detentor. Ele introduz o leitor no assunto. Se não for interessante e não fustigar sua curiosidade, pode espantá-lo. Se, ao contrário, for um bom título, vai instigar o leitor, levando-o a conferir a afirmativa ou topar o desafio. O mesmo não ocorre com outros tipos de arte. Ao chegar numa galeria, deparamo-nos imediatamente com a obra aberta, exposta aos nossos olhos. Amamos, odiamos ou ficamos indiferentes, apesar do título – que em muitos casos passa despercebido. A obra nos invade sem prévio aviso.
Para muitos artistas escrever, pintar, esculpir e moldar são atos comparáveis à gestação, com todos os cuidados, revisões e paciência que a situação merece. Até que chega a hora do parto, quando a obra é entregue ao mundo, para que seja apreciada, ganhe espaço e tome vida própria. Seguindo por esta linha, escolher título para uma obra assemelha-se a escolher nome para um filho. Alguns pais precisam esperar o filho nascer para ver que cara terá. Outros, estão longe de terem filhos, mas já sabem que nomes vão lhes dar. Com o texto acontece coisa parecida. Muitas vezes escolhemos o título baseados na primeira ideia, mas ao correr das linhas a história vai tomando outra forma, perdendo a vinculação com o título original, o que poderá causar frustração no leitor.
Na verdade, título e obra vão sendo concebidos juntos, ligados por um cordão, onde um alimenta o outro e garante a verossimilhança entre ambos. E, como a placenta, que precisa ser expelida para garantir a saúde da mãe, bons títulos, nascidos junto com as obras, podem dar maior sobrevida ao autor. 
 

 1° lugar na categoria Crônica, Concurso Nacional de Literatura Jorge Ribeiro, realizado em 2009, primeira edição, em Cachoeirinha, RS.

INVERSÕES TÉRMICAS


Quando eu era criança, verão era quente e inverno era frio. Ao chegarem os primeiros ventos de outono, começávamos a guardar as roupas de verão e arejar as de inverno, efetuando uma troca nas prateleiras que durava meses. Até que as árvores recomeçassem a florir, denunciando que o frio rigoroso logo daria lugar a dias mais longos aquecidos pelo calor do sol da primavera. Tempo que ficou na lembrança. Com o dito aquecimento global, provocado pela devastação das florestas, poluição, e tudo o mais que o ser humano fez contra a natureza nas últimas décadas, as estações mergulharam numa profunda confusão: Inverno e Verão se abraçam escandalosamente; e Outono caminha de mãos dadas com a Primavera. Perderam os limites!
 Vejo a humanidade seguindo este mesmo curso: as estações da vida se misturam, do mesmo modo que as estações do ano. Em alguns casos, pelo mesmo motivo: a urgência. O mau uso da natureza do corpo e dos elementos criados pelo homem, com industrialização e tecnologia, trouxe-nos conseqüências nefastas. Os males da velhice chegam antes do tempo. Moléstias que antes só apareciam na idade madura, hoje se manifestam em meninos de dez anos, a exemplo da hipertensão e da elevação do colesterol. Doenças predadoras como o câncer, há algumas décadas diagnosticadas preferencialmente na maturidade, surgem cada vez mais cedo. Esses males precoces, que exigem longos e delicados tratamentos, baixam a qualidade de vida, representando o outono fora de época, o que corrompe a ordem natural das coisas.
Por outro lado, os avanços da medicina devolvem juventude e dão novas perspectivas a pessoas antes condenadas. Modernos tratamentos são usados na cura do corpo e da alma, como a evolução dos transplantes, a perfeição das próteses e as recentes descobertas na área da genética. Sem desprezar os medicamentos para impotência e depressão, bem como a reposição hormonal. Ainda, os tratamentos de beleza representam ganhos neste confronto. Para aqueles que, em pleno outono da vida, recebem os ares das estações mais mornas, a perda de limites é a conquista da liberdade. Com licença para sonhar e realizar, vivendo com mais intensidade e prazer.
E, assim, deparamo-nos diariamente com pessoas de todas as idades freqüentando ambientes antes exclusivos de uns e outros. Jovens na fisioterapia e velhos na academia. Retorno aos bancos escolares depois de nascidos os netos. Seres de épocas cronologicamente diferentes se amando e fazendo valer seu direito à felicidade. Juntos, enfrentando as nuanças do tempo, sem medo do inverno, que em algum momento virá.

COERÊNCIA

 Há muita controvérsia sobre a legalização das drogas e dos jogos. Eu admiro muito as pessoas que têm uma posição formada a respeito, seja a favor ou contra, por se tratar de assunto muito delicado e multifacetado. Eu, pessoalmente, não consigo defender um lado, sem perceber a verdade existente no outro. Falo de jogos e drogas, porque estão no mesmo nível de discussão, envolvem questões muito parecidas de corrupção, lavagem de dinheiro e geração de empregos. E em ambos os casos pode haver dependência física ou psicológica. Mas, poderia perfeitamente incluir nas questões controversas, que merecem uma análise muito profunda dos dois lados da questão, a eutanásia e o aborto. Afinal, o que é viver quando a vida não vale a pena?
  Quanto às drogas, a pergunta é: qual a diferença entre álcool, maconha, cocaína, crack, cigarro, e outras drogas de farmácia? Por que proibir umas e outras não? Sabe-se que o álcool é a droga mais difícil de largar e o maior fator desagregador familiar e gerador de violência doméstica – justamente por ser legalizado, glamourizado e oferecido livremente em qualquer confraternização. O cigarro contém componentes que comprovadamente causam dependência, doenças graves e prejuízos aos que não fumam mas são obrigados a conviver com fumantes. Michael Jackson morreu em conseqüência do uso de uma poderosa droga legal, administrada e controlada por um médico. Inúmeras pessoas, mulheres em geral, tornam-se dependentes de drogas para emagrecer, também administradas e controladas por profissionais da saúde. Elis Regina e tantas outras celebridades morreram por overdose de drogas proibidas, usadas sem nenhum controle. O que faz a diferença? Permissão, proibição, controle, fiscalização? Infelizmente eu não tenho a resposta – ainda.
E o que dizer dos jogos? Mega, quina, loteria federal, bingos, jogo do bicho, cassinos, caça-níqueis. Todos eles podem causar dependência e todos podem ser manipulados também. Os bingos fazem a alegria de velhotes aposentados, que já não têm muitos prazeres na vida. Se legalizados, geram empregos formais, impostos e possibilidades de fiscalização.  Quem é jogador compulsivo gasta mais do que pode em loterias federais ou em carpetas com os amigos. Afinal, eu me pergunto: O que são jogos de azar? Jogos de sorte existem?
     Se em todos os casos de drogas ou jogos há possibilidade de dependência e também de manipulação por parte dos organizadores, por que uns são proibidos e outros são permitidos? Se permitidos, poderão ser mais controlados, arrecadar impostos, gerar empregos formais, diminuir a corrupção, estancar, quem sabe, o crescimento desenfreado do crime organizado. Não que eu defenda o uso de drogas ou a prática de jogos. Mas, uma vez que já existem, não vejo sentido em proibir uns e outros não. O que eu realmente defendo é a coerência. Ou se proíbe também o álcool, o fumo e as loterias, ou não se proíbe nada.

           

O RATO



Ele chegou sorrateiro, logo ao anoitecer, faminto. O que mais me faz odiá-lo é a prepotência. Egoísta e agressivo, é totalmente indiferente ao nosso sofrimento e miséria. Desrespeitoso, sobe as escadas e roça aquele corpo nojento em quem quer que esteja em seu caminho. Acostumado a viver como um rato, escondendo-se em esgotos, pode carregar todas as doenças ou imundícies que cabem num ser humano. Ser humano? Não, verme. Ele não é da mesma espécie que meus filhos e eu. Pior do que seu aspecto, é a sujeira que ele carrega na alma, inchada de tantos crimes e contravenções.
Sempre foi assim: quando eu pensava estar livre, ele reaparecia. Tantas vezes veio só pra me bater e se servir de mim. Algumas vezes me fazendo mais um filho. Filhos que ele não viu nascer, nem crescer, pois logo estava de volta ao seu esgoto ou à sua cela. Mas agora vai ser diferente, eu juro. Leninha já está despertando a atenção dele. Se eu não fizer nada, logo vai pra cima dela também. Se ele abusar da menina, eu denuncio, nem que ele me mate. Droga! Preciso de coragem para denunciar antes. Será que adianta?
Bom se ele morresse. De morte matada. É uma idéia que tem me perseguido há meses. Eu não queria, não sou dessas. Tive pai, mãe, até um pouco de estudo, mas a miséria e a raiva mudam a gente. Se eu fizer mal feito vou presa e as crianças, sabe Deus onde vão parar. Ele podia despencar da escada – já vi isso num filme. Mas se ele não morrer, me mata. E as crianças ficam na mão dele. Se eu tivesse para onde fugir... Da última vez, quando me achou, me quebrou dois dentes. De brinde me embuchou dos gêmeos. Ricas crianças! Nem me dão trabalho, um cuida do outro. Quem me preocupa é Leninha. Tá crescendo. Eu vejo os olhos dele crescendo junto com os peitinhos dela. Se foi difícil fugir quando tinha só a menina, imagina agora com cinco. Não dá, não vou além do terminal do ônibus e ele me pega de novo. Melhor que eu tenho a fazer é continuar servindo ele. Bem servido pode ser que esqueça os seios de Leninha. E, quando Sara ficar mocinha, eu fujo, juro que fujo. Ou mato.


Este conto foi inscrito no 4º Concurso Literário Mário Quintana, promovido pelo Sintrajufe, tendo obtido o terceiro lugar. Todos os premiados - categorias Conto, Poesia e Crônica – fazem parte da antologia Antes do ponto final, lançada na 54ª Feira do Livro de Porto Alegre.Foi a primeira vez que tive um escrito publicado. Também a primeira vez que participei de um concurso literário. Momento de grande emoção!