domingo, 11 de dezembro de 2016

REVERSO

“A palavra complica muito.”
(Antônio Maria)

Foi um encontro carnal.
A emoção tornou desnecessária qualquer palavra.
Nossos olhos brilharam num diálogo de luz.
E os corpos exalaram odores de desejo.
Bebi dos teus lábios na querência de mantê-los calados.
Nossos gemidos desconexos diziam tudo.
Entoavam letras embaralhadas de canções de amor.
Dedilhamos nossos corpos formando letras gregas e arabescos de sedução.
Pernas entrelaçadas nas cruzadas do amor.
A temperatura de nossos corpos era um inflamado discurso em defesa da paixão.
Sensações que dispensavam promessas.

E quantas vezes voltaste com jeito de quero mais!
Meu peito arfava sempre que sim.

Calados e sem qualquer emoção
Teus olhos fugidios desencontrando dos meus.
Teu corpo exalando as tuas dúvidas.
Teus gestos denunciando a tua pressa.

Meus lábios cerrados, grunhidos que falam de dor.
Tua mão tatuada em meu rosto.
O desenlace de tudo
Num discurso amargo e hostil.
Levantas com ímpeto de quem já vai.
Bates a porta com a força de quem dá adeus.
Ao sair, me deixaste no escuro.


Mas ainda brilham em mim faíscas das palavras mal ditas.

ANÔNIMOS

O apetite, para algumas pessoas é um vício tão contumaz e prejudicial quanto outros mais em evidência. Conheço pessoas que comem compulsivamente. Comem para compensar um vazio existencial. Dá para perceber claramente a dependência psíquica e, em médio prazo, física a que se submetem, pouco se diferenciando dos etilistas ou tabagistas. Em muitos casos, este apetite é de poder, mais grave e de cura bem mais difícil do que a fome de comida.
Em um curto período de tempo, surgiram inúmeras associações para juntar pessoas com os mais variados tipos de compulsão. São feitas reuniões semanais de ajuda mútua. A mais conhecida é a AAA – para os alcoólicos. Até mesmo o apetite sexual está sob suspeita: em excesso, requer tratamento. Outras associações reúnem, anonimamente, mulheres que amam demais, fumantes e jogadores. Tenho a impressão de que qualquer coisa insuspeita pode, de uma hora para outra, transformar-se em vício e requerer tratamento. Por isso faço tudo com moderação. Temo que meu vizinho do lado possa ser um psiquiatra “alienista”.
Mas, o que realmente me preocupa é que sinto crescer dentro de mim uma compulsão maior, que me surgiu em contrapartida à fome de poder. É a fome de justiça. Um apetite voraz, que me faz arder o estômago quando vejo tantas chagas expostas - seres humanos vivendo em situação de miséria e risco;   corrupção saltando aos olhos, em todos os níveis sociais; a guerrilha urbana e rural, que tomou conta de determinadas regiões. Homens redimensionando os conceitos de certo e errado.
 Acho tudo isso inconcebível. Penso que seja a hora de fundar uma nova associação, que dê apoio psíquico para esta compulsão emergente, a da inconformidade. Vem aí a AIA – Associação dos Inconformados Anônimos, da qual serei o primeiro membro. Vou abrir a reunião apresentando-me:
- Meu nome é Zulmara. Estou aqui porque me sinto doente. Não consigo me conformar com o rumo que a sociedade dos homens está tomando. Eu quero me curar. Faz três dias que não leio jornais, não entro na internet e nem ligo a televisão. Não sei se o caminho é esse, nem até quando vou conseguir.  Um dia de cada vez. Preciso de ajuda.

Em tempo: seria interessante que houvesse também uma associação para os que têm fome de poder. Mas quem se habilitaria  a abrir a primeira reunião?

AS AMARELINHAS

     Desce sobre mim um sono feito de todas as desilusões.”
(Antônio Maria)

           
A primeira tomei por indicação médica, para conseguir relaxar depois do funeral.
A segunda, porque sabia que sem o filho - único elo entre nós - você me abandonaria.
A terceira engoli de raiva, lembrando das humilhações a que me submeti em nome da harmonia familiar.
A quarta foi para esquecer que ainda te amava, apesar de tudo. Somente por ti e contigo a vida poderia fazer algum sentido depois da tragédia.
A quinta tomei pela rasteira que levei no trabalho, enquanto me distraía cuidando de ti e do nosso filho.
A sexta tomei pensando em quantas dívidas fizemos para tratar o filho amado, as quais nunca teremos como pagar.
A sétima e a oitava foram juntas, para homenagear o pai e a mãe de merda que eu tive.

Quando algo dá errado na vida adulta, inevitavelmente olhamos para trás, procurando as causas no passado.

Mas foi só quando ingeri a nona que vi passar o filme do abandono, da casa de passagem e da adoção aos 12 anos.
E tomei mais uma para engolir a lembrança dos maus tratos na casa nova.
Enquanto escrevo, tomo a décima primeira e a décima segunda. Jogo a cartela vazia no lixo do banheiro.

Nunca tomei tantas antes. Será o fim, ou apenas o vexame de uma tentativa frustrada?
            
Não pensava em morrer. Apenas dormir, dormir, dormir muito até que pudesse usufruir da leveza do abandono de mim mesma. Que me viesse um sono pesado, tão pesado que nem a dor maior do mundo me pudesse despertar.
Meus membros estão se amolecendo e o cérebro assume uma lentidão etérea.
Estou na beira do penhasco, o que me resta senão saltar? O vazio do fundo reflete o que sou hoje. Nada, nada mais do que nada.
Aqui já tive tudo e tudo perdi.

Mais uma cartela com doze amarelinhas.

MADRUGADAS

Mergulhado em sono pouco profundo e nada reparador, o ruído do automóvel me estremece. Um ronronar suave e melancólico, capaz de me buscar onde mais distante eu estivesse. Sabia que era ela. Não demoraria a confirmação, com o arranhar da chave na fechadura. Seu estado etílico ainda guarda sobriedade, pois fecha cuidadosamente a porta de entrada. Vislumbro seus passos e gestos repetidos ao longo dos últimos meses, ora na minha imaginação, ora diante de meu olhar perplexo.
Esgueira-se pelas escadas, apoiando-se com a mão esquerda. E eu posso escutar o leve tilintar do metal da aliança contra o do corrimão. Dá meia volta e começa a descer. Sinto as suaves passadas na direção da cozinha, pisoteando meus pensamentos. Abre a geladeira e escuto  barulho de vidro. Um banco é arrastado lentamente, mas ela não senta. Deve ter enganchado o pé distraído e cansado. O som do copo sendo descartado na pia e o clique do interruptor de luz me dão a certeza de que agora está vindo. Não ouço mais seus passos na escada. Deve ter retirado as sandálias e vem descalça. Mesmo assim, no meu doído silêncio interior, posso pressentir o estalar da madeira de cada degrau.
Penetra no quarto pela porta de correr entreaberta, que assim deixo de propósito, para espreitar cada instante de seu retorno ao lar. Caminha livre e leve pelo cômodo escuro; dirige-se ao banheiro. Diviso seu vulto na penumbra e quase não a reconheço.  Apenas uma luz muito fraca se revela pelas frestas da porta mal fechada. Joga o colar e os brincos sobre a bancada de pedra. Percebo a água escorrendo no lavatório, em seguida, o farfalhar de suas mãos delicadas em alguma gaveta - à procura de um comprimido, talvez. Um tempo que se arrasta. Fecho meus olhos tristes e desassossegados. Por fim, a pequena luminosidade se desfaz. Ela está vindo em minha direção. As roupas escorregando pelo seu corpo torneado e firme, sendo deixadas sobre o tapete. Deita-se ao meu lado, nua, como de costume. Acomoda o pescoço de cisne no travesseiro de penas. Abafo em mim mesmo o desejo incandescente, e sigo meu teatro - finjo que durmo. Ela segue o seu.


Noite após noite, semanas, meses. Ela vai continuar me torturando. E eu, engolindo minha culpa. Covardemente assistindo a decadência de um amor que eu mesmo destruí. Meu castigo.

O TEMPO, SEMPRE O TEMPO

“A velhice chega de repente, às vezes como um pássaro
que pousa fatigado na varanda, ao entardecer.”
(Antônio Maria)


            A primeira vez que envelheci foi aos 30 anos. Um belo dia me olhei no espelho e vi fios de cabelos brancos. Eles já estavam ali há algum tempo, mas eu dava um jeito de esconder. Ora jogava o cabelo para o lado, ora usava presilhas. Mas, naquele dia eles se mostraram para mim de uma forma tão escancarada que não pude mais ignorá-los. Tive que resolver o problema: passei a tingi-los. Foi um marco. A partir daquele momento comecei a observar que taxistas e comerciantes já me tratavam por senhora. Quando acostumei com a nova condição, percebi que não estava velha, estava adulta.
            A segunda vez que envelheci foi aos 50 anos. Um belo dia me olhei no espelho e vi que minhas linhas de expressão estavam muito marcadas. Havia bolsas sob os olhos e outros (nem tão) pequenos defeitos. Eles estavam ali há tempos, mas eu não queria ver. Investia em cremes cada vez mais caros, protetores solares cada vez mais potentes e exercícios faciais ensinados em programas de televisão. Até que assumi: não dava mais para sair sem disfarce, suave que fosse. Precisava usar maquiagem. Quando me recuperei do susto, percebi que eu era mais do que adulta, era madura.
           
            O tempo e a auto-estima – ou o espírito de sobrevivência – se sobrepõem a todo o resto. Em algumas semanas já estava acostumada com minha nova figura e gostando dela no espelho. Depois que a ficha cai fica mais fácil, vive-se melhor.
            Muitos envelhecimentos ainda estão por vir e sei que virão, um a um, lentamente. Entretanto, para mim a descoberta será sempre num clic. Um momento único – meu com minha imagem.
           
            Enquanto meu choque de realidade for apenas com meu reflexo no espelho, a vida seguirá sem grandes transtornos. Mas, haverá momentos mais dolorosos: quando a denúncia vier das minhas falhas motoras, da memória confundida, da dependência de medicamentos; quando meu corpo, extenuado de tanto viver, se entregar ao seu próprio entardecer; quando, definitivamente envelhecida por dentro e por fora, eu não puder mais me remendar, nem me disfarçar.

        Da última vez que envelhecer não haverá susto, apenas contentamento por ter chegado lá.

5 TONS DE MARIDO

Uma amiga, psicoterapeuta, solicitou que eu revisasse sua dissertação de mestrado, cujo tema é casamentos longos.  A pesquisa foi realizada em dois momentos: primeiro foram ouvidas as pacientes no consultório, e, depois, estagiárias visitaram diversos estabelecimentos frequentados por mulheres, tais como academias, estéticas, shoppings, saída de escolas e happyhours.
Para o trabalho, foram considerados longos os casamentos com, pelo menos, 18 anos de convivência. Segundo dados da pesquisa, as queixas femininas são recorrentes: primeiro que os maridos não querem mais saber de romance (ou sexo mesmo). Em segundo lugar, que eles bebem além da conta. Perderam a noção da hora de começar e de parar. Some-se a isso o fato de não saírem mais da frente da televisão e o desleixo com a aparência e a higiene pessoal, o que causa constrangimento nas mulheres. Em resumo, elas se queixam de não terem mais homem em casa.
Essa pesquisa  é visivelmente tendenciosa, pois só contabiliza as opiniões femininas. Mas, a autora diz que é muito difícil ouvir os homens, porque suas respostas são sempre vagas ou monossilábicas; eles não gostam que mexam em sua zona de conforto. É provável que após a publicação da dissertação, os maridos resolvam se manifestar. Ela aguarda ansiosamente, pois assim poderá obter material suficiente para pensar no doutorado.
Com base na pesquisa, tirei minhas próprias conclusões e elenquei aqui os cinco protótipos deste triste quadro doméstico:

Marido 1 – O molenga - Chega do trabalho já com bafo de pinga. Mija de porta aberta. Belisca alguma coisa na cozinha e abre a primeira cerveja. Se acomoda no sofá da sala. A cena é clássica: copo em uma mão, controle remoto em outra, pés em cima da mesinha de centro. Na tela, noticiário ou futebol. Quando não apaga no sofá mesmo, vai para a cama tarde. Encontra a mulher perfumada e quer chamego. Dá um bafo na orelha dela e faz uma tentativa de vida sexual, mas dorme antes que o membro consiga endurecer.

Marido 2 – O que dá duro - Reina e bufa a semana inteira. Reclama do trabalho, do chefe, dos subalternos, do salário e do trânsito. Culpa o governo, o vizinho, o pai e a mãe. Atormenta a mulher e os filhos. Quando quer sexo, a mulher dá logo, para se livrar do encosto. Dorme e acorda de mau humor. Quando chega o fim de semana bebe todas e vomita no tapete da cozinha. Afinal, ele merece.

Marido 3 – O estressado - Vive para o trabalho. Trabalha de dia, trabalha de noite. Fim de semana está alerta. Viaja muito. Sempre cansado. Pouco tempo em casa. Aprecia um bom vinho e uma boa mesa. Mas, parece que o único prazer nos últimos anos é o da boa mesa. Sexo, nem pensar. Prefere um programa de debates na televisão a cabo do que trepar com a patroa. Ela que se resolva sozinha.

Marido 4 – O irmãozinho - Depois que os filhos saíram de casa mudou-se para o quarto ao lado. Adora uma série no Netflix. Assiste sozinho na sala e solta muitos gases. Fuma e bebe regularmente. Já perdeu vários dentes. É um arremedo do homem de outrora. A patroa sai todas as noites. Shopping, cinema, e, agora, até uma oficina literária. Não se importa. Desde que não encha o saco dele, está tudo bem.


Marido 5  O que se acha - Este é um pouco mais jovem. Ainda sai com a família. Até aluga casa de veraneio no litoral. A cena da ida para a praia é clássica: o homem, - umbigão espiando entre o cós da bermuda e a barra da regata - caminha na frente, arrastando as havaianas novas na areia. Puxa o carrinho com as cadeiras e o guardassol. E, no ombro, leva o cooler com cerveja gelada. Ela, uns passos atrás, - óculos, chapéu e canga da Bahia - leva a bolsa de praia e o mate. Os filhos adolescentes, ou dormem ou já estão na orla com amigos. O diálogo, quando existe, é seco. “Onde eu boto a porra do guardassol?” “Enfia onde tu preferir, querido.”