sexta-feira, 5 de abril de 2013

NATAL NA ESTRADA

                                                                                                                                                                      


           Fomos convidados a passar o Natal na casa da minha irmã, interior do Estado. Nossa filha, que trabalhava no comércio, atrasou bastante a partida. Se tudo corresse bem, ainda chegaríamos a tempo de cear e abrir os presentes – antes da meia-noite. Mas não correu tudo bem. No trecho mais deserto da estrada, onde só havia lavouras de arroz, o carro estragou. Algo ocorrera com a ventilação do motor, pois esquentava demais, e foi preciso parar para não fundir. Desolados, meu marido e meu filho fuçavam no motor, mal iluminado por uma pequena lanterna, tentando, em vão, consertar nosso Natal. Apesar da lua cheia, a escuridão se punha contra nós. Os poucos veículos que passaram nos ignoraram completamente. Nenhum dos nossos celulares dava sinal naqueles campos.

            E agora, José?
            A festa acabou,
            a luz apagou,
            o povo sumiu,
            a noite esfriou,
            e agora, José?

            Depois das frustradas tentativas de consertar o carro ou obter ajuda, constatamos que teríamos que ficar por ali mesmo. Ocupamo-nos, então, do Natal. Abrimos o porta-malas e tiramos para fora quase tudo o que continha. Comecei a selecionar o que poderia ser útil para a nossa peculiar comemoração. Estendi no chão duas toalhas de banho, onde dispus aquilo que tínhamos: três panetones e dois pacotes de castanhas do Pará, que eu levava para a noite feliz; várias garrafas de espumantes e vinhos, para presentear os homens da família; e um gostoso bolo de nozes, minha especialidade em todos os natais. Abri o lindo pacote que continha o presépio artesanal, que levava para minha mãe – pedi perdão a ela, mentalmente – e o montei, peça por peça, lentamente, sobre o lado direito da nossa mesa improvisada.
            Não foi o pior nem o melhor Natal de nossas vidas. Foi diferente e emocionante. Ceamos e bebemos muito vinho, o que nos fez relaxar e dissipar um pouco do medo que a estrada deserta nos causava. A lua estava linda, enorme. Sob sua aura relembramos muitos outros natais, especialmente aqueles repletos de crianças, quando sempre aparecia um tio gordo vestido de Papai Noel, carregando um saco enorme, onde nunca cabiam todos os presentes. Os filhos nos divertiram, relembrando traquinagens da infância. Brindamos, já meio tontos, saudando o passado e desejando Feliz Natal uns aos outros.  
            Num determinado momento, meu marido sacou do talão de cheques e, ajustando os óculos para enxergar melhor, preencheu três folhas. Como de costume, entregou-os para nós, explicando que não sabia comprar presentes. Eu havia bordado para minha filha uma linda toalha de mesa, já que pretendia casar logo. Para o nosso meninão, entreguei um par de óculos, da grife que ele gostava. Pedro agradeceu e pediu desculpas, não podia dar mais que um abraço, pois não tivera tempo de comprar presente. Rimos muito, porque já conhecíamos bem essa falta de tempo dele. Marta me retribuiu com uma delicada blusa da malharia onde trabalhava. Por fim, tirei do porta-malas aquela caixa comprida que eles, tão curiosos, me apoquentaram vários dias tentando descobrir o que continha.  Entreguei orgulhosa ao meu marido e disse: abre, é teu. Vinha, há tempos, juntando dinheiro para realizar esta fantasia dele - olhar o mundo através da lente de um telescópio. E, de alguma forma, os anjos conspiraram a meu favor, com aquele Natal improvisado sob um céu todo estrelado, dando ao meu presente uma importância ainda maior.
           
            Quando o carro da polícia rodoviária se aproximou, foi praticamente ignorado. Aquele resgate tardio já nem interessava mais. Com os filhos adormecidos dentro do carro, namorávamos ternamente sobre as toalhas de banho, embevecidos pelo romantismo da noite. O telescópio, principal estrela da festa, apontava para a lua que, por sua vez, cobria a todos com sua capa de cauda luminosa.

MOEMA



Onde está Moema? Aquela professorinha que encantava as crianças da Rua Santo Antônio, na década de 60. Lembro de suas cartinhas, que apareciam sob nossas portas. Flores miúdas, borboletas e versinhos numa letra muito caprichada. Somente para Moema nós tínhamos esta importância de gente grande. Ela nos tratava com carinho, respeito e doçura. Brincava de roda e de estátua, contava histórias, jogava amarelinha, e tinha paciência para nos ouvir.
Onde terá ido Moema? Ela partiu e eu nem vi. Tão ocupada eu estava, crescendo e adolescendo. Será que ela foi embora sorrateira, sem dar adeus? Que pena, tão distraída, nem percebi que  estava me apartando da minha infância. Preciso reencontrar Moema; ela carrega um pouco de mim. Era um tempo feliz. Lembro com afetuosa saudade dos seus desenhos, do seu sorriso e de sua voz suave - parecia música. Quando será que nos perdemos, Moema e eu?


PS.: Procura-se também Virgínia, Agda Beatriz, Márcio, Elisa... 




VÍNCULO


Tenho um vinco entre as sobrancelhas, quase uma cicatriz, que poderia perfeitamente ser preenchida com botox, e me deixaria com a fisionomia mais leve. Mas eu tenho relutado muito em preenchê-lo. Esta marca faz parte da minha história. Ela demonstra as tantas vezes que contorci meu rosto de dor, medo e preocupação. Gosto de ser vaidosa. Quero envelhecer com elegância. Mas preciso deixar certas marcas, pois são a minha identidade. Sem elas vou me tornar apenas mais uma. Uma mulher sem passado, cujo rosto não tem nada a dizer. Deixo minhas rugas de expressão para que falem por mim sobre aqueles assuntos delicados que não quero relembrar. Nem sempre estou disposta a falar de tudo, então elas são a minha salvação.
Para um bom observador, é mais fácil conhecer uma pessoa pelos gestos, rugas, manchas e movimentos dos olhos, do que pela história que lhe é atribuída com palavras. Muitas pessoas que se submetem a tratamentos de beleza e cirurgias plásticas, a pretexto de permanecerem jovens, estão, na verdade, tentando esconder parte de sua história, por não gostarem dela.
Eu não acho que minha história de vida seja a mais triste, a mais bonita, ou a mais engraçada. Também não acho que deva ser escondida ou mostrada em filme. É apenas uma história, como tantas outras. Mas é a minha. A transposição de tantos obstáculos me fez assim. Quando me olho no espelho, percebo que aquela marca entre as sobrancelhas é meu maior vínculo com a realidade e, ao mesmo tempo, é o que me faz  sonhar.

NA FEIRA

              Na última Feira do Livro de Porto Alegre, fui com uma amiga a um sarau poético, cujo tema era a obra de Machado de Assis. Lá chegando, sentamo-nos um pouco atrás e perto da porta, pois já havia começado e não queríamos chamar a atenção. Pouco depois, vendo muitas cadeiras vazias nas duas primeiras filas, decidimos trocar de lugar discretamente. Escolhemos a segunda fila, embora a primeira estivesse totalmente vaga. Ao meu lado esquerdo havia uma cadeira com uma sacola plástica e o que parecia ser uma peça de roupa – um casaco, talvez. Mais adiante, uma senhora embevecida com o que acontecia no palco; nem notou nossa presença. Não tardou e apareceram quatro meninas alvoroçadas, arredando as cadeiras da primeira fila, para chegarem até a mãe. Deviam ter entre três e dez anos. O barulho das cadeiras e das sacolas plásticas que elas remexiam, somados aos sussurros muito audíveis, quebraram completamente minha concentração. Fiquei bastante irritada, principalmente porque elas iam e vinham. Saíam para a rua e tudo ficava em paz. Logo estavam de volta, tumultuando o ambiente. Eu não conseguia entender aquela mãe que não tomava nenhuma atitude para silenciar suas meninas. Apenas abriu a blusa e ofereceu o seio à menor, numa atitude mecânica, sem desviar os olhos sorridentes do palco.
            Minha irritação atingia seu pico, quando a menorzinha sentou-se ao meu lado. Quis fazer cara de bruxa, mas não consegui. A menina me encarou com um sorriso tão sincero e seus olhinhos pretos brilharam para mim. Me enterneci de imediato. Olhei atentamente para a mulher ao lado e fiquei tentando imaginar qual seria a sua história. Uma mãe de família, de origem simples, atraída por tantos eventos gratuitos da Feira. Vestiu a filharada com roupa domingueira e as trouxe para passear. Já cansada - final do dia - resolveu sentar-se ali e permitir-se um pequeno prazer. Uma mulher incomum, capaz de interromper seu trajeto para ouvir falar de Machado de Assis e seus personagens. Quem sabe o que a esperava em casa? Que tipo de marido teria? Se é que tinha um. Que árdua semana de trabalho pela frente? Não devia ter uma vida fácil. Ela estava ali, sem dúvida, tomando um fôlego, renovando energias. Alheia a todo o resto, naquele instante mágico só existiam Capitu e Bentinho. E aquelas meninas barulhentas não eram problema dela.

MEU NOME É MULHER


Agi por instinto, sem ponderar nada. Aquele devasso já tinha sido descartado mil vezes de minha vida. Mas, quando ele se reaproximou com os olhos mornos e a voz sussurrante não resisti. Tudo nele cheirava a perigo, a perdição -  e eu já me sentia perdida. Fingia que não, fazia ar de desdém, mas já sabia como tudo iria terminar. O universo era meu cúmplice nesta loucura. A lua me aliciava implacavelmente.
Tantas vezes risquei seu nome no meu diário, do mesmo modo que riscava na agenda as tarefas já cumpridas – encerradas. De nada adiantou. Riscam-se nomes, palavras, tarefas... Antes de riscar o nome tinha que ter eliminado o sentimento. Nunca consegui porque não queria de verdade. Não passo de uma libertina, escondida sob um manto puído de inocência e fragilidade.
Uma vez desembaraçada de meus próprios preconceitos posso jogar ao chão meu velho manto. Assim me mostro nua e impura, como deviam ser todas as mulheres, desde os tempos de Madalena. Se Jesus perdoou a pecadora, por que haveriam os homens de não perdoar a nós outras? Despidos somos todos iguais: instintivos como qualquer animal. O que faz dele um devasso e de mim uma pecadora não é nada mais do que a idéia pré-concebida de que existe certo e errado, prêmio e castigo. Se conseguirmos nos desvencilhar destes conceitos, perderemos todos a razão, não sobrando a ninguém o direito de julgar o outro ou a si mesmo. Assim, receberei dadivosamente o direito à fornicação.