Você tem
que vir comigo em meu caminho
Mesmo que
meu caminho seja triste pra você
(Vinícius
de Moraes)
Miguel e Sueli foram casados
por longas décadas. Um casal feliz e parceiro. Exemplo para muitos outros.
Criaram seus três filhos com dificuldades, mas com muita alegria. Casa cheia de
amigos sempre. Ela cumpria com esmero sua dupla jornada: secretária durante o
dia e dona-de-casa à noite e fins-de-semana. Mas ele fazia por merecer. Cuidava
de todos os consertos domésticos, era atencioso com os filhos e passava os
sábados fuçando no motor do carro velho. Sempre pronto para levar e buscar a
meninada nas festas, onde brilhavam com vestidos feitos ou reformados na
máquina de costura da mãe.
Filhos formados foram um
para cada lado, e o casal já aposentado passou a viajar mais. Visitavam filhos
e netos, passavam algum tempo com parentes distantes, conhecendo lugares novos
e reconhecendo velhos caminhos. A vida parecia um sonho bom, até que Sueli teve
um AVC. O pesadelo durou meses. Um diagnóstico terrível, sequelas graves,
tratamentos difíceis, desesperança e luta. Enfim, a superação. Sueli recuperou boa
parte dos movimentos do lado afetado, com a ajuda de muita fisioterapia. A
vontade de viver e continuar sendo feliz eram maiores do que tudo.
Mas, enquanto Sueli,
guerreira, dedicava-se integralmente a recuperação de suas forças físicas e
mentais, Miguel, carente, dedicava-se aos prazeres mundanos. Era visto em
bailões durante as tardes e em mesas de bar com novos amigos nas sextas à
noite. Distanciava-se cada vez mais de casa. Começou a sair com Liege,
atendente do bar do Ananias. Ela lhe dava atenção, carinho e sexo. Dançava e
bebia com ele. Quando Sueli voltou a andar, usava muletas e arrastava uma perna
– não dançaria nunca mais. Passou a evitar a mulher, alegando estar impotente.
Ela, inconformada com o rumo que a vida do casal estava tomando, cobrava do
marido mais atenção e sugeria que procurasse um médico.
Não demorou para que alguém
lhe soprasse a verdade. E Sueli foi conferir. Pegou o marido com a boca na
botija. Furiosa e humilhada, mandou-o embora de casa. Que fosse morar na
kitinete da velha assanhada. Pego de surpresa, sem tempo para raciocinar, teve
que ir. Liege também não esperava dividir seu pequeno espaço com um homem
àquelas alturas da vida. Passada a tempestade, baixada a poeira, por influência
dos filhos, vergonha dos parentes e amigos, Miguel voltou para casa. Mas nada seria
como antes. Sueli, cheia de razão, passou a menosprezar Miguel diariamente.
Chamava-o de covarde, traiçoeiro e incapaz de gerir a própria vida. Liege
estava sempre entre eles como o fantasma da traição.
Tanta mágoa foi destruindo o
que restava de saúde em Sueli. E seguiram-se mais outros AVCs, de variadas
intensidades. Até que ela não pode mais sair da cama. Parou de falar, passou a
usar sondas, e só dava sinais de consciência quando, ao sentir a aproximação do
marido, seus olhos cuspiam fogo. Ele, acuado em sua própria casa, resolveu
consultar os filhos. Decidiram que a melhor solução seria uma clínica de
geriatria para ela e a liberdade para ele. Miguel alugou a casa, e foi viver
com Liege - num apartamento de três dormitórios, com churrasqueira na sacada.
Envelheceu, arrumou uma
bronquite crônica, reumatismo, pressão alta, problemas na próstata e uma
artrite no joelho que não lhe deixaria mais dançar. Dizem as vizinhas
solidárias que é praga da Sueli, que jurou que nunca daria a ele o benefício da
viuvez. Firme e forte, com seus olhos de fogo, ela espera pacientemente a hora
do reencontro.
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