sábado, 3 de maio de 2014

UM HOMEM, UMA QUIMERA



Queria dizer coisas simples, bem simples
Que não ferissem teus ouvidos, minha mãe.
(Vinícius de Moraes)

Reinaldo voltava para casa, após longos anos de ausência. Para a casa onde nascera e crescera. As recordações enchiam-no de emoções agridoces. As tortuosas goiabeiras, onde trepava para colher as frutas que resultavam naquele doce tão gostoso. A mãe e a avó (já falecida), com lenços coloridos nas cabeças, revolvendo a mistura no enorme tacho de cobre. Nestas ocasiões eram duas bruxas, que mexiam o caldeirão de asas de morcego, no castelo assombrado de suas histórias em quadrinhos. Mas, quando elas chegavam com a goiabada pronta e açucarada, imediatamente transformavam-se em fadas.
Lembranças doces misturavam-se com amarguras do passado. Foi uma época difícil para ele. Fingia e mentia o tempo todo. Era necessário. Assim, protegia sua família e a si mesmo. Se soubessem como ele era de verdade, provavelmente não teria sido respeitado nem pelo próprio pai. E todos teriam sofrido as conseqüências de seu modo diferente de ser. A cidadezinha era medíocre.
O primeiro passo para a liberdade deu ao se casar com Alice – a tímida menina de tranças que vivia a espiá-lo por detrás da cortina. Completaram-se na insegurança e no desejo de superação. Estabeleceram-se na cidade vizinha com um comércio de móveis, que logo se tornou forte e lucrativo. Tiveram uma filha e dedicaram-se por inteiro ao negócio da família. Mas, logo, Reinaldo percebeu que não poderia levar adiante aquele teatro. Partiu rápido, sem olhar para trás, deixando a loja e a menina para Alice.
Na cidade grande e distante, onde era apenas mais um, enfim, pode assumir sua homossexualidade. Superou todos os preconceitos, inclusive os seus. Viveu muitos amores. Sinceros e falsos. Sublimes e promíscuos. Assumiu as rédeas de sua vida e passou ele mesmo a escrever sua história. Sem fingir, sem mentir. Tornou-se um empresário respeitado, tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Encontrou um amor verdadeiro e vivia feliz. Mantinha contatos virtuais com a filha, que poucas vezes esteve na capital. As novidades para ela eram tantas que não foi difícil para Reinaldo manter as aparências. O pai morrera quando ainda estava casado com Alice. Com a mãe fazia contato telefônico freqüente, mas não a via há alguns anos.
Esteve calado durante quase todo o percurso. Da capital até a sua cidadezinha eram umas seis horas de carro. Benta, a menina órfã que a mãe criou, havia se casado com um paraguaio e ia embora para a terra dele. A mãe, idosa, reclamava a presença do filho. A mente que vagava entre o passado e o futuro foi despertada pela voz do companheiro de viagem:
- Como vai ser, Rei?
- Sou filho único. Ela precisa de mim... – respondeu reticente.
- E ela vai me aceitar? Já sabe de nós?
Reinaldo não respondeu, perdido que estava em seus pensamentos. Afloravam memórias daqueles tempos em que não ousava ferir os ouvidos de sua mãe. Fora um jovem frágil e inseguro. Mas, agora, tornara-se homem.

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