A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda
de velhas magias.
(Vinícius de Moraes)
Era meados de junho. Como em todo o final de
estação, Helena arrumava os armários e separava o que não queria mais para
entregar a instituições de caridade. Fazia isto com o enorme prazer de estar
ajudando pessoas que nem mesmo conhecia. Separava cada peça com verdadeira dedicação
- lavava, passava, cosia, pregava botões que faltavam e, por fim, acomodava
tudo em sacolas. Separava as dela, as do marido, as das crianças, tudo
catalogado, conforme tamanho e sexo.
Este ano decidiu ir mais além. Baixou os
livros da estante colegial dos filhos decidida a dividir aquele mundo de
fantasia com outras crianças. Havia livros infantis que seus meninos não leriam
mais – passaram para a fase juvenil. E havia livros juvenis repetidos,
resultado da desatenção na hora da compra do material escolar dos menores:
Pedro Bandeira com suas Drogas – A Droga
da Obediência, A Droga do Amor. Alguns clássicos em edições mais
apropriadas para jovens leitores. E aqueles da coleção Para Gostar de Ler, que ela mesma lia quando eles deixavam rolando
pela sala.
Cada livro fazia-a lembrar de uma história ou
de um momento vivido com a família. Percebia o apego e a dificuldade que teria
para doá-los. Principalmente os infantis. Pinóquio e o Soldadinho de Chumbo pareciam
estar lá de corpo presente, prontos para levar Cinderela ao baile, ou salvar
Chapeuzinho Vermelho do ataque do Lobo Mau. Separou alguns, consertando-lhes as
capas que as crianças estragavam, mesmo com todas as recomendações. Tudo corria
bem, apesar da nostalgia.
Ao pegar um exemplar muito surrado de O Pequeno Príncipe, deixou cair um
papelzinho azul claro. Uma letra bonita e delicada dizia palavras de carinho e
encerrava com a seguinte frase: Você é eternamente responsável por aquilo que
cativa. Imediatamente deu-se conta de que aquele bilhetinho enfeitado de
borboletas cor de rosa havia sido escrito para ela. Fazia parte da sua históra.
O livro fora presente da melhor amiga da infância e viera com aquela
dedicatória. Com o tempo e o uso, o papelzinho deve ter-se descolado. O mesmo
tempo impiedoso que havia descolado as duas amigas. Distantes há tantos anos e,
agora, unidas por uma frase num pedaço de papel antigo.
As portas abertas da memória trouxeram a
infância de volta. E elas brincaram, conversaram, fizeram juras de amizade
eterna. Apostaram corrida de bicicleta. Vestiram as bonecas para o desfile de
modas. Usaram a maquiagem da mãe. Debutaram juntas. Descobriram o primeiro
amor. Então, Helena despertou daquele instante de magia. Paulo Ricardo era o
nome dele. O pivô de tudo. Por causa deste primeiro amor, brigaram a única vez.
O rapaz, belo e inconseqüente, que não sabia o que queria, estragou uma amizade
de anos entre duas garotas. Namorou uma. Depois, a outra. Voltou para a primeira,
tentou ter as duas, até encontrar uma terceira com quem ficou durante muito
tempo.
Os corações adolescentes, magoados, nunca
conseguiram refazer a amizade. Cada uma seguiu seu caminho e nunca mais se
encontraram. Helena formou-se dentista e casou com um colega. Era uma mulher
feliz e realizada. O papelzinho azul claro, entretanto, havia mexido no fundo
de uma gaveta. Não poderia mais fechá-la facilmente. Levantou da poltrona onde se
encontrava, coberta de livros e lembranças; sentou-se diante do computador e
digitou o nome da amiga. Era hora do resgate.
Nenhum comentário:
Postar um comentário