domingo, 11 de dezembro de 2016

SÓ COM ELES

“Não estou só por dentro. Ser-se só por fora nunca teve grande importância.”
(Antônio Maria)


            Hoje me veio à memória um membro da família, tido por todos como um solitário. Não comemorava aniversários - nem o dele, nem os dos outros. Natal e Ano Novo preferia passar sozinho. Não cultivava relacionamentos com parentes. Detestava os vizinhos. Amigos não tinha, um ou outro companheiro de copo e falatório político.
            Não se sabe como se casou e formou família. Engana-se quem pensa que alguma coisa mudou. Continuou exatamente como era. Isolado do mundo e até mesmo da prole. Na vida profissional era competente, mas insensível às demandas de chefes e colegas. Fazia seu trabalho, batia o ponto e ia embora.
            Durante alguns anos, conseguiu impor seu isolamento ao resto da família. Os filhos também não tinham amigos e a mulher vivia só para eles. Mas o tempo passa, as crianças crescem, pensam pela própria cabeça e começam a questionar. Não podendo mais evitar que sua casa fosse invadida por uma horda de jovens barulhentos, isolou-se mais ainda, no quarto.
         Neurótico, esquisito, sociopata, esquizofrênico, autista, maluco, são alguns dos termos que usavam para defini-lo. Aqueles que o conheceram, pois muitos dos frequentadores da casa nunca tinham cruzado com ele.
            Os filhos se casaram e deram-lhe netos. Não foi ao casamento de nenhum. Ficou menos rabugento depois que todos saíram de casa. Não precisava mais andar se esquivando deles. Quando visitavam, as crianças batiam na porta do quarto, querendo ver o avô. Eventualmente, conforme o humor, abria e deixava que entrassem. Era um mundo encantado para elas. Naquela fase da vida, além de livros, ele colecionava latinhas, caixinhas e outros objetos curiosos – porcas, clipes, moedas em desuso, fichas telefônicas, bolinhas de gude. Assim que as crianças pegavam intimidade e começavam a mexer nas coisas, o velho corria com elas do quarto.
           
            Segundo a mulher, ele nunca foi só. Vivia com seus fantasmas.
            
       Quando morreu, a família vasculhou o quarto, selecionando documentos, livros e objetos para doação e partilha. Entre tantas quinquilharias, encontraram dois copos feitos de bobinas de DKW. Mas a surpresa maior foram os papeis. Muitos papéis. Uma infinidade de manuscritos, alguns datilografados na velha máquina Royal. Crônicas, contos, poesias, tudo escrito por ele nos últimos 50 anos. Lá estavam os companheiros de toda a vida: Brizola, Jango e Jucelino; Vinicius, Bandeira e Drummond; João, Dora e Dona Mirtes. Uma variedade de personagens reais e fictícios, que nunca permitiram que ele fosse um homem só.


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