sexta-feira, 5 de abril de 2013

O BULE COR DE ROSA





                    Minha avó era alemã. Fugiu de sua pátria amada, durante os horrores da primeira grande guerra. Aos meus olhos de criança, ela nunca foi jovem; minhas lembranças me conduzem a uma velha senhora de pequenos e apagados olhos azuis, pele rugada pelo tempo e coluna bem curvada. Mas, tinha uma energia invejável. Cultivava uma pequena horta no fundo do quintal; cozinhava e cuidava da casa com prazer e competência. Moraram com ela, por algum tempo, um filho, nora e netos, até que a nora foi-se com as duas crianças. Sobrou para ela o fardo do filho alcoólatra, que ninguém mais do que a mãe poderia carregar. Tio Kali bebia até cair, mas, quando estava sóbrio, era um homem simpático, culto e um excelente marceneiro. Como não parava em nenhum emprego, fazia serviços avulsos para vizinhos, amigos e parentes.
            Eu amava a minha oma. Ela sempre esperava nossa visita com gostosas cucas de morangos colhidos no quintal, pães e biscoitos caseiros. Para as crianças havia ainda sucos de frutas frescas. Eu era fascinada pelo enorme bule cor de rosa, enfeitado com passarinhos e borboletas. Posto sobre a chapa do fogão a lenha, soltava vapores no ar e aguardava altivo a hora do chá das senhoras. Vovó não conseguia falar algumas palavras da nossa língua: pão virava pon, e a tia Eva virava Efa. Os netos teimavam em ensinar-lhe a pronúncia correta. Ela tentava várias vezes, até que desistia e caía na risada. Gostava de assistir ao Programa Sílvio Santos todos os domingos, era quase uma religião. E, querendo dividir com os outros sua alegria, chamava: fem fer, fem fer. Comprava regularmente o Carnê do Baú, para concorrer a prêmios. E, de tanto insistir, foi sorteada. Foram a São Paulo, ela e outra neta, com todas as despesas pagas. Participou do programa ao vivo e ganhou um televisor – sonho de consumo daquela época.
            Quando terminei o Ensino Médio, fiz um intercâmbio e passei alguns meses fora do país. Minha oma morreu e eu nem pude me despedir dela. Quando voltei ao Brasil, a casa estava toda mudada: havia móveis modernos misturados com a antiga sala de jantar, e louças e panelas novas na cozinha. A casa tinha uma nova dona. Tio Kali, incapaz de morar só, havia levado uma namorada para viver com ele, e nós já não éramos tão bem-vindos. Os objetos pessoais de minha avó foram retirados da casa por minha mãe e minha tia. Pedi à mãe que me desse o bule rosa. Ela me deu dois livros de histórias infantis, que a oma costumava contar para nós. Mas, eu queria o bule, que me fazia sentir o sabor das cucas e o aroma dos biscoitos e pães. Procurei por ele em vão, pois a oportunista que tomou conta da casa de minha avó sumiu com tudo o que, para ela, não passava de caco velho. Numa das tantas bebedeiras de meu tio, durante o curto período das novas núpcias, ela chamou um caminhão de frete e foi-se embora para sempre, levando as antiguidades que compunham a sala de jantar de minha avó, e deixando lá apenas seus modernos móveis laminados.
             Depois de anos, resgatei o bule rosa numa moita do quintal. Caído e humilhado, com o bico cheio de terra, enfiado no que fora um dia o canteiro de hortênsias. A borboleta morrera, e os passarinhos, já depenados, esperavam pelo meu socorro.

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